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Pedagogias e políticas da vida

(ou quando a vida se torna totalmente administrada)

Maximizar a vida, no sentido de torná-la totalmente estratégica, útil, sem desperdício de ações e energias, mostra-se o objetivo central da vasta gama de investimentos para ampliar o capital humano dos sujeitos, tornando-os produtivos e plenamente inseridos nas lógicas vigentes no capitalismo neoliberal contemporâneo.

Enquanto ainda associamos política quase exclusivamente com atuação partidária, somos cada vez mais gerenciados por sofisticadas políticas que investem sobre a vida como um todo – as “políticas da vida”. Elas crivam minuciosamente todos os espaços e tempos dos sujeitos, fazendo funcionar um poder microfísico que investe sobre modos de vida individuais no interior do conjunto de uma população. A vida está no centro, alvo principal do poder, um capital a ser permanentemente gerenciado. Uma série de instâncias sociais movimentam-se para engendrar e articular pedagogias que visam dar forma aos sujeitos-flexíveis dos tempos de hoje. Maximizar a vida, no sentido, aqui, de torná-la totalmente estratégica, útil, sem desperdício de ações e energias, mostra-se o objetivo central da vasta gama de investimentos para ampliar o capital humano dos sujeitos, tornando-os produtivos e plenamente inseridos nas lógicas vigentes no capitalismo neoliberal contemporâneo. Esse refinamento das políticas da vida tem contribuído para que pedagogias sejam acionadas na “modelagem da espécie humana” em contextos que atravessam e transcendem as instituições educativas mais tradicionais, numa estratégia que visa o refinamento do domínio sobre as pessoas. A pedagogia, como um conjunto de saberes e práticas, parece ser o elo articulador entre ensinamentos e práticas que são adotadas para que cada um opere sobre si mesmo, proporcionando que os ensinamentos e interesses de uma cultura atuem e façam parte de cada existência. Num contexto de intensas transformações como o das últimas décadas (no campo da política, da tecnologia, da ciência, etc.), vemos uma explosão de pedagogias em operação nos múltiplos artefatos que atravessam nossas vidas cotidianamente. Um movimento que expõe as pedagogias infiltradas em todos os domínios, acionadas, assim, para guiar e gerenciar as vidas, dirigindo os sujeitos a determinados caminhos e modelos de referência válidos e desejáveis nos tempos de hoje. Afinal, onde há vontade de transformar os sujeitos há, também, pedagogias para tornar isso possível.
Os enormes investimentos sociais e familiares nas crianças e jovens de hoje, por exemplo, demonstram o quanto pensar nelas como capital humano − a ser qualificado para a inserção e boa valorização na lógica e no regramento do capitalismo contemporâneo − é expressão dessas políticas da vida. São evidências disso: a proliferação de novos saberes nos currículos escolares, a excessiva atividade extra-curricular, a pressão por bons resultados (numa ênfase mais quantitativa do que qualitativa), a comparação e competitividade constantes, o monitoramento ininterrupto. Entre outros que se poderia mencionar, esses são alguns elementos que compõem as estratégias de atuação sobre as crianças e jovens, fazendo deles projetos a serem incessantemente (re)avaliados e (re)alimentados. Parece que os mais ínfimos recantos da existência estão crivados e cercados de estratégias para fabricar, modelar vidas produtivas e, por isso mesmo, que respondam às expectativas sociais consideradas desejáveis e legítimas. Desponta nesse conjunto uma desvalorização do passado em prol de um presente vivido intensamente e de um futuro a ser incansavelmente replanejado. É em nome desse futuro que a vida presente é tão gerenciada. Contudo, esse excessivo gerenciamento deixa pouco espaço para a criação, para que alguma regra seja quebrada e algo inusitado, diferente, inventivo, possa surgir. Parece que a resposta a isso tem sido, por um lado, o tédio, a rotina e a repetição do mesmo, por outro, o albergamento dos sujeitos em um presente de máxima fruição, onde passado e futuro inexistem. Assim, precisamos pensar seriamente nas conseqüências dessas políticas da vida, e avaliar os riscos e o pauperismo humano quando a vida vai se tornando totalmente administrada, inteiramente sob controle, sem frestas, sem escape, sem surpresas.

Viviane Castro Camozzato
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Edição:

Edição N.º 194, série II
Outono 2011

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