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A solidão é um estado de alma

Um dos mais antigos colaboradores da Página e autor de vária obra nos domínios da educação e do trabalho social, Adalberto Dias de Carvalho é doutor em Filosofia da educação, catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, professor convidado da Universidade de rouen (França), presidente da Sociedade de Filosofia de educação de Língua Portuguesa e coordenador do observatório da Solidão, que funciona no âmbito do Centro de Investigação Interdisciplinar e de Intervenção Comunitária, do Instituto Superior de Ciências empresariais e do Turismo (ISCeT), no Porto. A ideia de estudar a solidão surge da confluência de duas áreas de interesse para Adalberto Dias de Carvalho: a exclusão e a intimidade, que têm em comum o fenómeno da solidão. e o que é a solidão, afinal?

Começo com a pergunta mais óbvia: o que é a solidão?

É a pergunta mais óbvia e é a resposta mais difícil. É curioso verificarmos que a solidão enquanto noção não aparece na maioria dos dicionários ligados às disciplinas científicas. Por exemplo, podíamos esperar que aparecesse nos dicionários de Psicologia ou de Psicanálise, mas muito dificilmente a encontramos. não deixa de ser curioso, porque é uma noção que afecta as pessoas, que as preocupa. É uma noção que não é agradável, afecta tudo, afecta todos, mas curiosamente é pouco tratada. não quer isto dizer que não apareça depois, quando os cientistas procuram esclarecer conceitos que lhes são próximos, como conceitos de depressão, de exclusão, de misantropia, etc. Mas considerá-la como objecto de estudo científico é relativamente recente. não que não existam centros de investigação espalhados por todo o mundo e investigadores que se debruçam sobre este fenómeno. nos estados Unidos, no Canadá, há muito trabalho feito sobre isso. Há escalas para medir a solidão, o que mostra que temos assistido a uma tentativa de objectivação desta noção.

Há um interesse maior…

o interesse na abordagem científica tem sido progressivo. Muitas vezes a solidão permaneceu como algo que tinha a ver com a literatura, com a poesia, a pintura, a música… Conhecemos o fenómeno da solidão por vários autores e outros tantos pensadores, como António nobre, Marcel Proust ou virginia Woolf. não é difícil encontrarmos na literatura a abordagem do fenómeno da solidão, mas, por isso mesmo, merece menos interesse pela parte das comunidades científicas; mais interesse pela literatura, menos interesse pelas comunidades científicas, até data recente já que agora começa a ser tratada.
Mas acrescentava que a solidão é um quase-conceito, porque a noção de solidão corre o risco de ser destruída se for estritamente conceptualizada. ou seja, aquilo que ganhamos em objectividade, podemos perder em intensidade na apreensão, na definição e na compreensão da própria noção. Muitos autores dizem que a solidão é um sentimento, eu utilizo outra expressão que é mais vaga: a solidão é um estado de alma. Há aqui uma transgressão poética, mas faço-o intencionalmente, na medida em que julgo que aquilo que a ciência não consegue conceber, di-lo a filosofia, e aquilo que a filosofia não consegue equacionar, deixa para os poetas, para os artistas. A solidão para ser abordada precisa da ciência, mas precisa também, com certeza, da filosofia, da arte, da poesia, da pintura e da música.

Falou de escalas. Que tipos de solidão é que existem? E como se podem medir?

É complicado. A sua questão agudiza o próprio problema da psicologização da noção de solidão. Porque, na verdade, aquilo que se vai medir através das escalas não é tanto a solidão em si mesma, mas indicadores de solidão, como, por exemplo, o tempo que a pessoa está só, as dificuldades que tem nas relações com os outros, o tempo que demora a fazer amizades, a quantidade de amigos que tem, a representação que faz daquilo que os outros pensam acerca dele, ou seja, esta tentativa de aferir sintomas ou indicadores de solidão é que justifica a utilização das escalas. esta utilização obriga a proceder-se a um tratamento analítico da noção, a uma separação ou desmembramento conceptual da noção. Aí pergunto-me se aquilo que fica no fim é solidão ou se é um objecto de estudo científico em que o próprio método utilizado encobre, com a sua sombra, o fenómeno que está a estudar. eu tenho sérias dúvidas. Acho importante dizer, também, que hoje em dia há tendência de se separar a ideia de uma solidão negativa da solidão positiva.

Em 2009, num artigo para a PÁGINA, distinguia duas definições de solidão: para Pascal, “é um caminho longo e doloroso”; para Flaubert, “um verdadeiro prazer”. É aqui que se encontra a distinção entre a solidão negativa e a positiva?

Há pouco falei dos artistas. Digamos que o artista, no processo criativo, constrói processos de solidão, uma solidão escolhida, criativa, positiva. Busca o isolamento e, mais do que isso, busca o recurvamento sobre si mesmo na tentativa de perscrutar, na sua própria subjectividade, aquilo que não consegue encontrar no mundo exterior. Mas ao mesmo tempo, neste recurvar-se sobre si mesmo, ele procura encontrar os outros, os outros seres humanos, os outros seres materiais, o mundo. este discurso de descoberta do mistério que é a vida é um processo de solidão criativa, solidão positiva. Mas aceitemos que grande parte das vezes a produção da obra de arte incide sobre a solidão negativa, sobre aquela que é triste, sobre aquela que é sofrida, que angustia, que nos preocupa.
Digamos que a solidão positiva é aquela que é escolhida, mas quantas e quantas vezes nós vivemos a solidão que nos é imposta e não aquela que procuramos. A solidão pode ser provocada pela pobreza, pela privação das relações humanas, pela morte das pessoas que nos são próximas e por esta solidão mais profunda ainda que é a solidão da nossa antevisão da própria morte.
Por vezes, também se pergunta se os animais sofrem de solidão. A esse propósito falo de um livro muito recente que se chama “o Filósofo e o Lobo” [Mark rowlands], que relata a experiência de um professor de filosofia americano que resolve adquirir um lobo. no primeiro dia, ele vai dar aulas e deixa o lobo em casa. Quando regressa encontra tudo praticamente destruído. Ao contrário da maioria das pessoas, não mandou o lobo embora e pensou: “eu fiz a este animal o que não tinha o direito de lhe impor, ele ficou sozinho a sofrer de solidão; o que vou fazer é transformar-me em companheiro dele e ele em meu companheiro”. e então passou a levar o lobo todos os dias para as suas aulas, que ele acompanhava uivando de vez em quando na sala. Isso passou a ser aceite não só por ele, como pelos seus alunos, pela comunidade. E parece confirmar que os animais...
Diríamos, a partir daqui, que os animais sofrem de solidão. Aliás, o autor diz que é importante descobrirmos o lobo que reside dentro de todos nós.
A solidão sofrida tem muito a ver com a percepção que nós temos de que somos seres mortais. Diz-se que os animais não têm essa percepção, que não sofrem a morte por antecipação. ora bem, a morte, a visão da morte é a vivência de um profundo estado de solidão; é uma separação, uma separação dos bens materiais, uma separação dos outros, o ficar apenas comigo mesmo. e a antevisão da nossa própria morte condena-nos a viver necessariamente estados de solidão. e depois também há a morte dos outros, dos outros que nos são queridos.
Também se diz que a solidão nos é atávica. neste sentido, da nossa pertença ao mundo animal resta em nós esta realidade: os ancestrais do ser humano, que viviam da caça, não podiam sobreviver sozinhos, eles tinham, por defesa e por estratégia de sobrevivência, de viver em grupo. o estar só era sempre vivido como uma situação de perigosidade, como um agudizar da sua própria vulnerabilidade, fragilidade.
Talvez por isso, haver uma recusa, atávica ela também, da solidão. Porque a solidão é expormo-nos de uma forma aguda à nossa própria vulnerabilidade.
Digo isto para exprimir esta ideia: há uma solidão que nós não escolhemos e essa é normalmente a solidão triste, que nos é imposta. Aliás, também se diz que a criança vive logo quando nasce a sua própria primeira experiência de solidão. Se repararmos bem, nós nascemos na solidão, quando somos abrupta e violentamente resgatados do ventre das nossas mães. Diz-se, também, que por volta dos 3/4 anos a criança volta a sofrer fenómenos de solidão, quando começa a passar do estado de fusão com os seres parentais para o autoreconhecimento da sua autonomia e da sua subjectividade. Por exemplo, muitas vezes os pais não compreendem os terrores nocturnos, o não querer ficar só, e tem muito a ver com isso. A criança descobre a sua capacidade de ser autónoma, mas também o receio de, com essa autonomia, ser abandonada pelos próprios pais. e esta experiência volta a surgir de forma aguda na adolescência.

São exemplos de solidão ao longo da vida. São impostas ou são perfeitamente naturais?

São perfeitamente naturais no fundo, com isto tudo, nós percebemos que a solidão faz parte da ontologia do nosso ser nós somos naturalmente seres de solidão. Quando fugimos ou quando pretendemos fugir de uma forma abrupta, emotiva, à solidão, estamos, afinal, a fugir de nós mesmos. Porque a solidão também tem de ser vista nesta perspectiva: a solidão é o encontro com nós mesmos.

Não há um auto-conhecimento maior quando estamos sós?

Há.

E isso não pode ser positivo?

Pode… o que nós temos de distinguir é, como um pouco em tudo na vida, a violência dos fenómenos.
A solidão, quando é violenta, provoca naturalmente tristeza, provoca sofrimento, atenta contra a dignidade da pessoa. Portanto, aí é uma solidão que devemos procurar combater ou ajudar a combater. refiro-me, por exemplo, à solidão do idoso que fica abandonado num lar, seja pela família ou por ficar completamente só. não está só por opção, está só por imposição, porque morreu o seu cônjuge, porque os filhos trabalham, por múltiplas razões, ele fica isolado, solitariamente isolado, na sua casa ou mesmo na família, ou mesmo no lar. Aí também há solidões. Há muitos idosos que estão em situação institucionalizada que dizem que a sua maior aspiração era viverem sós. esta é a solidão mais aguda, mais crítica, porque é vivida no meio dos outros. Há muitas razões, mas algumas delas relacionam-se com os ritmos que muitas vezes lhes são impostos, sem critério, nos lares: comem todos à mesma hora, deitam-se todos à mesma hora, lavam os dentes à mesma hora. esta proximidade dos outros é uma proximidade violenta para o idoso e violenta-o porque o priva de si mesmo. vamos aos fenómenos reais: quem é que não se sentia violentado se, depois de uma experiência de vida de autonomia (foram profissionais, foram pais, foram avós), tivesse de repente de se deitar a uma hora que lhe fosse imposta, de ver televisão até uma hora que lhe fosse imposta ou de ver os canais que são colocados?
A solidão pode ser vivida – e quantas vezes é – na companhia dos outros e pode ser bem vivida, ou não vivida como tal, quando se está só. Só fisicamente. nós não somos sós se percebermos a nossa fragilidade. Aí compreendemos profundamente a necessidade e a importância da relação com os outros, porque se nós vivermos a solidão, sentimos a falta dos outros. e se estamos sempre numa relação intensa e constante com os outros pode haver este fenómeno que é esquecermo-nos da importância de sermos seres de relação. ora, quando somos privados da relação, com certeza sentimos a sua falta.

Referiu alguns exemplos de solidão. Na infância, na velhice… 
Afinal, quem é que sofre mais, quem é mais afectado pela solidão?

Há muitas vezes o pressuposto de que a solidão está associada aos idosos. neste sentido, deixo um dado, esse sim, que a ciência nos tem proporcionado: parece que aqueles que são mais atingidos pela solidão não são os idosos, são os adolescentes; pelo menos pela aplicação das escalas, aceitando os limites desta aplicação. Há uma maior percentagem de adolescentes atingidos pelos fenómenos da solidão, pelos sintomas da solidão, do que idosos. A diferença, depois, é a seguinte: é que o adolescente tem uma maior capacidade de ultrapassar a solidão, enquanto o velho tem muito mais dificuldade de se libertar dela, e percebe-se bem porquê. Desde logo porque a expectativa de vida é mais curta e, portanto, a formulação dos projectos é mais difícil. Se um adolescente sentir a incapacidade de formular projectos, perder a esperança, isso é algo que a educação, o apoio familiar e da escola pode ajudar. Por isso, é curioso pensarmos o que é que a educação pode fazer a este propósito.

E o que é que a Educação, a Escola e a Família podem fazer para combater o fenómeno?

Antes, aproveito para dizer o seguinte: se o idoso é atingido pela solidão por ter experiências na sua fase terminal de vida que contrariam a autonomia de toda a sua experiência anterior, até porque há um atentado à sua própria dignidade, no jovem ou na criança, é sobretudo o efeito-surpresa. relativamente à criança de 3/4 anos, a experiência que ela tem de solidão tem muito a ver com o facto de ser surpreendida com a constatação de que afinal pode fazer coisas sozinha, pode pensar sozinha, e de que, ao mesmo tempo, quando está assim, não está perto dos seus pais ou os seus pais não lhe estão a prestar atenção.
É o primeiro sentimento de vulnerabilidade, fragilidade, portanto, por surpresa. enquanto no caso do idoso não é por surpresa, é porque essa solidão põe em causa a vivência que teve.

E os adolescentes, de que forma são afectados?

De uma forma geral, há uma atitude de revolta, muitas vezes incompreendida, também difícil de compreender. Mas há um aspecto que temos de aceitar e de perceber: o adolescente muitas e muitas vezes sofre. ou seja, o luto que o adolescente faz relativamente aos seus pais, às figuras parentais, é um corte. Por isso nós chamamos-lhe luto; e como todos os lutos são dolorosos e têm de ser feitos, o adolescente também procura a sua autonomia, procura ser adulto. o adolescente despede-se da segurança da infância, despede-se desse universo relacional, estruturante, sólido, da infância.
Claro que falo de uma infância que decorreu normalmente, porque há experiências também traumáticas na infância, nunca podemos generalizar. Jacques Lacan fazia a distinção da própria figura parental: falava dos pais reais, dos pais imaginários e dos pais simbólicos.
Três dimensões da paternalidade que significam que a criança que perde por alguma razão – por morte ou por condenações em tribunal, em que os pais são afastados da relação com os filhos, por exemplo – vai sempre buscar na figura do pai imaginário ou na figura do pai simbólico essa figura parental com a qual tem necessidade de se relacionar. Se não encontra essa figura em lado nenhum, vai viver prematuramente estados agudos de solidão.
Se assim não for, vai ser na adolescência, porque aí é inevitável.
A adolescência tem de ser vivida, tem de se deixar viver, mas tem de ser acompanhada, porque a solidão é também um vazio, é uma sensação de vazio, de espaço não ocupado, de ruptura, é levar-nos até aos limites de nós mesmos, mas limites onde muitas vezes nos perdemos de nós mesmos, sem encontrar os outros. ora, esta experiência na adolescência tem que ser acompanhada, porque se não for, pode provocar a busca de soluções imediatas, rápidas, que permitam aguentar tanto sofrimento. Daí, por exemplo, os riscos das toxicodependências, suicídios...

E, então, o que é que a Educação e a Escola podem fazer?

A educação pode ser uma educação para a solidão, uma educação pela solidão e dificilmente deve ser uma educação contra a solidão. e digo-lhe porquê. vamos começar pelo fim. A educação contra a solidão, aparentemente, deveria ser o guia a seguir. não sou um partidário da educação agónica. Há autores que o são, da educação pelo sofrimento, que dizem que é para habituar as pessoas a enfrentar a vida. Mas temos de ter também muito em atenção os riscos da educação hedonista, digamos, uma coisa não nos pode levar à outra. Há aqui um meio-termo, um equilíbrio entre a educação agónica e a educação hedonista que deve ser pensado e reflectido. Se nós seguimos apenas o caminho de uma educação que procura contrariar a solidão, podemos criar na criança e no jovem – que podem depois sofrer repercussões na sua vida adulta – a ideia de que é possível viver sem solidões. ora, não é possível viver sem solidões. e agora falo da solidão negativa, a solidão que nos atinge… nós somos necessariamente atingidos por ela, mais vezes, menos vezes, mas somos atingidos por ela. É a própria vida que nos vai obrigar a isso, por morte de pessoas e familiares, de entes queridos, por desgostos amorosos, por privações materiais, por deslocações, por emigração. essa educação é complexa, a educação que tem a ver com a solidão tem de ser imediatamente acompanhada pela educação pela solidão e para a solidão. Poderão perguntar, então propõe que através da educação se provoquem estados de solidão nas crianças e nos jovens? não é isso que eu digo, mas preparar as pessoas para viver, para suportar e, inclusive, tirar partido das situações de solidão. A solidão pode aumentar a reflexibilidade sobre nós mesmos, e aí nós encontramos os outros. ora, é isso que os artistas demonstram, isso deve ser aproveitado, explorado. Por outro lado, educar através da solidão – o que é que eu quero dizer com isto? o adolescente, por exemplo, deve ser advertido de que vive, de que está a viver, porque começa a ter a experiência mais profunda da sua intimidade e a ter dificuldade em vivê-la, em partilhá-la...

Em lidar com isso...

em lidar com ela. A intimidade é uma aquisição cultural e uma aquisição pessoal. nós sabemos que, por exemplo, na alta Idade Média, as casas não tinham divisões que separavam as pessoas nas suas várias tarefas ou nas suas várias actividades do quotidiano. Hoje em dia, se vemos pessoas que não têm essas separações na sua casa, dizemos que vivem em situações de promiscuidade. ora, o que nós hoje chamamos promiscuidade era uma situação normal. Há artigos extraordinários sobre a história do pudor, que é uma aquisição também cultural. Se nós virmos também o que representa o surgimento dos retratos na pintura, tem a ver com esta descoberta da individualidade e da própria intimidade.
A intimidade tem a ver com o viver connosco, o aceitarmos vermo-nos ao espelho, sozinhos – esse é um dos aspectos da intimidade em termos culturais. em termos pessoais, a evolução da criança e do jovem passa pela construção da sua própria intimidade, desde a altura em que a criança começa a querer ir à casa de banho sozinha, a querer esconder-se, a querer vestir-se sozinha, a ter vergonha da nudez, até à adolescência, quando isso aparece de forma mais profunda.
A intimidade, hoje em dia, até é um direito, mas é um direito complicado de ser vivido, porque se não for saudavelmente vivido pode converter-se em fenómeno de solidão. em última instância, e ao contrário do que muitas vezes se diz, se a intimidade é eu estar comigo mesmo, é também, na sua expressão mais profunda, a partilha com o outro. Isto é curiosíssimo.
Aquilo que parece ser a reserva solitária de um indivíduo, na sua expressão mais profunda...

É partilha…

É partilha. A partilha da intimidade significa, por exemplo, quebra de solidão, porque é relação e é relação de receber e de dar, e implica uma educação que, curiosamente, é sistematicamente esquecida nos nossos programas educativos. educa-se o cidadão para a vida pública, educam-se os seus hábitos alimentares…
Mesmo a própria sexualidade, a forma como é tratada, nunca ou quase nunca é tratada na dimensão da intimidade. ora, a não abordagem consequente destas envolvências antropológicas do fenómeno da solidão pode levar a criança ou o jovem, e depois o adulto, a conviver mal com a solidão. o adulto, por exemplo, vai ter experiências de solidão no emprego, na família, e vai viver experiências também terríveis de solidão pela ruptura na continuidade das suas etapas de vida. refiro-me concretamente àqueles estádios em que, por exemplo, o adulto entre os 35-40 anos fica desempregado e não consegue arranjar emprego porque as entidades empregadoras preferem um indivíduo com 20 anos.
De um momento para o outro, ele vive uma experiência aguda, dura, de ruptura na continuidade, na estabilidade da sua própria vida, que significa que, nesse momento, ele é simultaneamente alguém que fica dependente, que procura e quer ser autónomo e tem dificuldade em lidar com estas situações.

Defende que nas escolas deveria educar-se para e pela solidão e não contra. Mas as escolas estão preparadas para isso?

Arrisco-me a dizer que não, por várias razões. A solidão ainda não foi assumida como uma questão para a educação. Que eu saiba não consta dos programas, a não ser na sua forma estética, na literatura... não consta dos padrões de desempenho dos professores, publicados pelo Ministério da educação e que depois servem de suporte para a avaliação dos docentes. os padrões de desempenho nunca referem a criança, referem sempre o aluno. ora, o aluno é um dos estatutos da criança, mas por trás do aluno está sempre uma criança, está um ser humano. As preocupações com a visão pragmática da educação, com as competências e a sua definição, levam a que se despreze estas dimensões. embora existam escalas de solidão, como é que vamos medir o professor que se preocupa com a solidão dos seus alunos, que são as crianças com quem trabalha?

Quanto é que isso conta na classificação da avaliação dos docentes?

Há dias, uma professora contava um episódio que me tocou muito. Um aluno descia as escadas de uma escola, teve uma queda grave, bateu com a nuca num dos degraus e a dado momento ficou imóvel. os colegas rodearam-no, mas a criança não reagiu. estou a falar da criança, quem caiu não foi o aluno; quem caiu foi uma criança, não foi o número 15 do 7º B que caiu, foi o António, o Manuel, que tem pai, que tem mãe, que brincou, que chorou... Há um momento em que se aproxima uma determinada professora e nesse momento o miúdo reagiu pela primeira vez; os olhos mexeram, estendeu a mão para agarrar a mão da professora, que ele agarrou e que nunca mais largou. As primeiras palavras que disse foram:
Stôra não me largue, não me deixe, e a professora acompanhou-o, esteve sempre com ele e acompanhou-o assim, olhos nos olhos, mão na mão, até ao hospital. o que é que isto tem a ver com a solidão? esta criança, numa situação de surpresa e de sofrimento, tem uma necessidade aguda de relação de companhia, que lhe dê segurança, e que é o olhar, de quem ele nunca mais se desvia, e a mão desta professora.

É um episódio que mostra bem a importância de uma relação pessoal saudável, solidária, que quebra, não anula, mas que atenua o estado transitório de solidão existencial que era o que aqui se estava a passar. Quanto é que isto conta para a avaliação desta professora?

Absolutamente nada! respondendo à sua pergunta, se as escolas estão preparadas, dir-lhe-ia que infelizmente não!

Mas será que isso não tem a ver com a capacidade humana dos próprios professores?

Poderá também ser. Para se ser um bom professor, tem de se ser, antes de mais, uma boa pessoa. Tem de haver um equilíbrio. A grande preparação para se ser professor passa pela criança que fomos, pelo adolescente que fomos, pelas experiências que tivemos, pelo equilíbrio da nossa própria formação pessoal.

E acha que os professores poderiam ter formação nesse sentido?

Poderiam ter. Deveria haver acções de sensibilização, de formação, para lidar com estes fenómenos de relação pessoal em que é preciso contar com uma proximidade relacional, pedagogicamente abordada, tratada, fundamentada e medida, mas que é necessária na relação com as crianças, com os nossos alunos, com os jovens que habitam a escola. nas nossas escolas estão muitas crianças e muitos jovens que vivem situações de profunda solidão, ou porque têm os pais presos, por exemplo, ou porque têm as mães que vivem da prostituição. São casos frequentíssimos, as pessoas nem imaginam...
Têm uma família completamente desestruturada, porque têm pais toxicodependentes ou porque vivem em pobreza extrema, por muitas razões. Mas, mesmo tirando essas situações agudas, as situações correntes da vida levam a uma falta de relação de tempo das famílias para com as crianças, os pais trabalham...

Independentemente da classe social...

Sim, independentemente dos grupos sociais. Isto implica uma formação na relação deste triângulo: criança/jovem, escola/professor e família. Implica esta triangulação, que raramente é pensada, que raramente é sopesada na formação do educador. não sendo abordada, significa que muitas destas crianças, destes jovens, transportam naturalmente consigo situações amargas de solidão, que bloqueiam designadamente a sua vida nas escolas, na relação com os outros.
Podemos dizer que, em educação, há formas de permitir a convivência sadia com a solidão, na sua relação com a solidariedade – há uma relação entre solidão e solidariedade, a solidão pode levar-nos à solidariedade, assim como tende a haver solidariedade com os fenómenos da solidão. Se o professor estiver atento a este fenómeno, ele vai, por exemplo, promover nas suas aulas, nas suas actividades, trabalhos de equipa, de grupo, mas vai promovê-los estando ao mesmo tempo muito atento àquelas crianças e jovens que têm dificuldades em integrar-se nesses trabalhos de grupo, dificuldades que se podem manifestar de várias maneiras, pela sua ausência ou por dificuldade em partilhar… Frequentemente, isso tem por trás fenómenos de solidão, são pessoas que muitas vezes não têm a possibilidade de partilhar com os outros, de ter uma consciência solidária, seja na família ou em circulo de amigos.
Uma coisa que é muito importante e que poucas vezes se faz é ver o que se passa nos recreios. os recreios deviam ser constante e sistematicamente objecto de observação das escolas e dos professores. Tantas vezes se fala do bullying. o que é que o bullying tem a ver com a solidão? Tem muito a ver. A criança que é vítima de bullying é uma criança que está a sofrer de solidão e importa saber se o agressor, ele próprio, também não passou já por isso. A atenção tem que ser dada à vítima, mas também tem que ser dada ao agressor. Quantas vezes o agressor também o faz porque viveu ele próprio situações desse tipo, que depois procura superar, ultrapassar, projectando-as, quando tem possibilidade disso, em terceiros?
Isto tem de ser objecto de observação, respeitando-se todavia o direito de todas as pessoas a recolherem-se perante si mesmas. não se pode obrigar ninguém, criança, jovem ou adulto, a viver constantemente em relação intensa com os outros. Porque nós também temos necessidade de estar sós, isso tem de ser respeitado, compreendido. Mas temos de distinguir a necessidade de estar só da solidão como patologia, porque a solidão mais profunda é aquela em que as pessoas caem e de que não conseguem fugir. Isso deve ser objecto de uma formação, de uma sensibilização dos professores, e de um acompanhamento das crianças e dos jovens, para evitar que a solidão que é normal se transforme numa solidão patológica.

Os principais sinais são aqueles sintomas que referiu?

esses são os sinais evidentes. A criança que tem dificuldade em integrar-se em grupos, que é repudiada pelos grupos, que o faz de uma maneira violenta, ou sinais de falta de autoconfiança…

A solidão tem a ver com a representação que fazemos de nós mesmos, com a representação que os outros fazem de nós mesmos e com a representação que nós fazemos daquilo que pensamos que os outros pensam de nós. São três variáveis importantes.
A criança que se queixa que os outros não lhe ligam, que os outros não o aceitam, a criança que tem dificuldade ou não tem coragem de exprimir a sua opinião, a criança que tem dificuldade em se expor perante os outros, é alguém que não tem autoconfiança, alguém que claramente começa a ter sinais de falta de auto-estima. e a auto-estima é algo que a educação deve promover e que tem a ver com o fenómeno da solidão. Há crianças que também não têm essa auto-estima por ter receio de que os outros não pensem bem delas. Por exemplo, a chamada pedagogia do êxito passa por promover actividades em que nós conseguimos que uma criança que está com dificuldades de auto-estima consiga fazer algo que seja reconhecido por ela como sendo bem feito e reconhecido também pelos outros como estando bem feito. Isto destaca um aspecto muito importante a ser considerado na educação.
Falo dos sinais, porque estes são os que me parecem mais importantes para alertar ou ter presentes e que podem exprimir-se de diferentes modos: em relação aos companheiros, às pessoas da mesma idade, como em relação aos adultos. e as pessoas têm de estar muito atentas também a esta expressão da solidão junto dos adultos. Pode surgir de duas maneiras: pela dificuldade em comunicar com os adultos, pura e simplesmente, ou por uma procura ansiosa do adulto, da companhia do adulto, que muitas vezes tem a ver com fenómenos de compensação. Se em família não tem acesso dialogal à figura parental, depois vai buscar a compensação na figura parental do professor. o professor tem de a desempenhar, mas tem de perceber, tem de estar atento, que isto pode representar um fenómeno de isolamento da criança no seio da família.

Nos casos específicos de solidão dentro da sala de aula deve-se contorná-la ou ensinar a lidar com ela?

ensinar a lidar. Contornar não, nunca. Temos de enfrentar. o que temos de evitar é que a solidão se torne precisamente uma doença. Temos de ter uma relação saudável com a solidão. não só pela vivência como criança, como pela preparação para a vida adulta. Hoje em dia, vivemos numa sociedade em que existem fenómenos de solidariedade institucional, mas esta é a tal sociedade contemporânea, que é sobretudo uma sociedade de indivíduos, uma sociedade em que as pessoas vivem ou procuram poder viver a sua autonomia, em que sentem o direito de viver a sua autonomia, a sua individualidade, sentindo todavia necessidade de organizar formas de sociabilidade, de relação saudável com os outros.
ora bem, isto é diferente das comunidades tradicionais, onde a norma se impunha de uma forma extraordinariamente forte à intimidade de cada um. Que ninguém se iluda pensando que não existiam aí também fenómenos de solidão, simplesmente a solidão não tinha o direito de existir. Salvo um personagem ou outro, que era normalmente a figura do louco, do bêbado, que tinha uma vivência de marginal que lhe conferia o direito de exprimir a sua individualidade, mas que, por isso mesmo, era rejeitado, marginalizado. nestas comunidades, a educação da criança e do jovem era feita no sentido da sua absoluta integração, da diluição da sua individualidade na comunidade. Aliás, estudos antropológicos mostram que, por exemplo, em muitas das tribos africanas que ainda subsistem, os ritos de passagem à vida adulta são os ritos que afirmam o jovem como não detendo mais direito à afirmação da sua individualidade, é a fusão plena do indivíduo nas normas duras, constrangedoras, mas homogeneizantes da comunidade.
ora, podíamos dizer, então, que aqui não há solidão… Mas há, porque a solidão existe em todas as pessoas, simplesmente é uma solidão que não tem direito de expressão. Por outro lado, estas comunidades vivem frequentemente uma solidão colectiva; elas vivem fechadas sobre si mesmas e separam-se relativamente a todas as comunidades vizinhas. nas sociedades contemporâneas, é colocado à disposição dos indivíduos um arsenal imenso de instrumentos que permitem viver só e que permitem viver a sua solidão: para se ter acesso às notícias, liga-se a televisão, está-se em casa, não é preciso sequer ir comprar o jornal; nos supermercados, há comida feita, preparada, tenha-se dinheiro para a comprar; existem serviços que lavam a roupa, passam a roupa a ferro…

Ou seja, a sociedade está preparada para que as pessoas vivam em estados de solidão...

não é por acaso que, por exemplo, em França, 20% dos lares são compostos por uma só pessoa. em Montreal, no Canadá, um terço dos apartamentos são habitados por pessoas sós. em Portugal, os números de que eu disponho, ainda pelos Censos 2002, apontam para 17% de pessoas que vivem sós. A sociedade está cada vez mais preparada para isso, está organizada para que a pessoa não dependa, por exemplo, dos vizinhos. Aparentemente, diríamos que as sociedades tradicionais educavam melhor para a solidariedade e portanto preveniam melhor os estados de solidão do que as sociedades urbanas contemporâneas. Eu não estou seguro que seja assim. Primeiro, porque não preparavam para a solidão, precisamente negavam, ao oprimir a individualidade, oprimiam a solidão; por outro lado, havia a solidão colectiva, as comunidades afirmavam-se contra as outras. Além disso, dizemos muitas vezes que as sociedades urbanas são geradoras de solidão…
Isso, muitas vezes, é perguntado pelo negativo, por aspectos que podem ser negativos, e um será este: é curioso que nunca as pessoas viveram tão perto umas das outras, nos prédios de andares, mas ao mesmo tempo nunca ignoraram tanto as outras pessoas que vivem a escassos metros. Isto é extraordinário. e, curioso, são capazes de estar muito mais preocupadas com a pessoa que na televisão confessa a sua solidão, ignorando completamente a solidão do vizinho que vive a escassos centímetros de si.
Mas, dizia, isto é o aspecto negativo, como há o fenómeno do abandono dos idosos, por exemplo, do adolescente que fica abandonado pela família diante da televisão ou da internet horas e horas, porque a família não tem tempo. Mas depois há os aspectos positivos, que era o que dizia há pouco: a organização da sociedade permite que realmente as pessoas vivam sós. ora, viver nesta sociedade contemporânea de solidões implica uma aprendizagem, implica uma educação para se viver nela, sob pena de a escola entregar à vida autónoma pessoas que não foram preparadas para elas, inclusive porque viveram na ilusão do comunitarismo ilusório e passageiro que a escola pode proporcionar.
Há experiências que podem ser extremamente importantes para a preparação de um jovem para viver saudavelmente estas situações de solidão, que é, por exemplo, o jovem que é preparado para actividades ao ar livre, em que é obrigado a partilhar com os outros, mas ao mesmo tempo a administrar-se a ele mesmo e em situações que por vezes são duras e penosas. Há actividades que podem e deveriam ser desenvolvidas pela escola, permitindo às crianças e aos jovens experienciarem esta relação saudável com a solidão. repito que a experiência da solidão não é necessariamente uma experiência de negação do outro, pode ser uma outra forma de procurar o outro, de desejar o outro, sendo que a fuga à solidão pode, contraditoriamente, representar não uma vivência solitária, mas uma fuga a si mesmo.

Usou várias vezes a palavra solidariedade. Qual é a relação entre solidariedade e solidão?

Tirando as formas violentas de solidão, a pessoa que vive a solidão pode ser a pessoa que nessa mesma solidão encontra formas mais conscientes de percepção da necessidade de relação com os outros. A solidariedade exprime essa outra dimensão do humano que é a necessidade da relação, mas que não é contraditória com a própria solidão. os dois fenómenos não se excluem. Aliás, julgo que a compreensão de um conduz ao outro. A solidariedade pode funcionar, por um lado, como uma solidariedade que previne estados nefastos de solidão, mas, por outro, pode ser praticada por pessoas que vivem a solidão, por quem procura precisamente os outros e encontra, por exemplo em actividades voluntárias, uma forma de partilhar com os outros a sua própria experiência. E quantos casos conhecemos…

Portanto, solidão e solidariedade não se excluem necessariamente.

Digamos que se encontram de uma forma complexa, de uma forma por vezes contraditória, mas sem se eliminarem uma à outra. vou voltar atrás e reforçar uma questão: é importante ter sempre presente que há solidão individual e há solidão colectiva. Por que digo isto? Por exemplo, os imigrados vivem muitas vezes situações de extraordinária solidão e isso é muito esquecido. o excesso sobre eles mesmos, a cristalização que eles fazem da sua própria cultura, dos seus vínculos culturais, faz com que não só fiquem isolados relativamente à chamada sociedade de acolhimento, como, entretanto, se isolam da própria sociedade de onde partiram, porque, entretanto, evoluíram para uma cultura terceira, que nem é a que deixaram nem é a cultura onde estão. Quer dizer, ficam pelo menos duplamente desintegrados.

Referiu isso quando falou da solidão que o adulto sente quando tem necessidade de emigrar…

exactamente. o nomadismo, se gera estes fenómenos de solidão, gera também fenómenos de comunitarismo e de solidariedade extremamente importantes. É o que se forma entre os grupos dos emigrantes. e quanto mais eles se unem, mais excluídos ficam ao mesmo tempo, e esta vivência é terrível. É a terceira cultura que acabam por criar.
Deixe-me referir outro fenómeno contemporâneo muito interessante, ainda a propósito dos fenómenos da solidão, mas que depois implica um tratamento, uma abordagem complexa: é guetificação das nossas sociedades. o gueto, por definição, representa o isolamento de uma comunidade e a sua condenação à solidão, a solidão colectiva. Curiosamente, a palavra vem de um termo italiano antigo, que é uma mistura de metais. A palavra tem uma origem de mistura, não de separação. estas populações guetificadas, digamos assim, são condenadas à solidão pela exclusão social, por uma determinada sociedade, mas acabam por gerar no seu seio fenómenos reforçados de solidariedade e aquilo que, por exemplo, aconteceu há uns anos em Paris: as revoltas dos subúrbios. Que podem ter muito a ver com este fenómeno: é que essas comunidades foram excluídas, condenadas à solidão colectiva, assumem a sua própria coesão e transformam aquilo que era solidão em orgulho de serem o seu próprio grupo.
Daí marcharem sobre aqueles que os excluíram, dizendo quantas e quantas vezes “vocês excluíram os nossos avós, os nossos pais; vocês quiseram aparentemente integrá-los, mas agora somos nós que não queremos ser integrados”. Ao fenómeno de solidão colectiva sucede-se um reforço de solidariedade dos grupos que são guetificados, que tende a transformar aquilo que era uma fraqueza numa força que se exprime pela revolta.

Falemos agora do Observatório da Solidão, de que é coordenador…

o observatório da Solidão foi criado há cerca de dois anos e procura constituir um interface entre a investigação e os vários sectores do público. Tem uma página na internet [www.iscet.pt/pages/observatorio-da-solidao], onde se podem encontrar informações de diversa ordem, desde investigação própria, produzida pelos investigadores do próprio laboratório, até investigação de terceiros. Divulgamos toda a investigação que nos chega, a informação realizada por outros grupos de pesquisa, mas também divulgamos eventos científicos concretos, colóquios, exposições, artigos científicos sobre a matéria, notícias de todo o tipo que surjam sobre o assunto, livros, manifestações artísticas, filmes que tenham a ver com a problemática, quadros, pinturas… Ao constituir este interface, o observatório procura disponibilizar informação que seja útil para vários segmentos da população, desde jornalistas, responsáveis políticos, investigadores, estudantes, formadores, professores… esta é uma das grandes funções do observatório.

E como surgiu esta vontade de estudar o fenómeno?

Há, pelo menos, dois fenómenos que me interessam muito em termos de investigação: as questões da exclusão e marginalização e as questões ligadas à intimidade. Foi a conjugação da preocupação dos estudos destes dois fenómenos que levaram à percepção de que o que podia ser comum a todos era justamente a solidão. Ao mesmo tempo, a percepção de que a solidão enquanto tal estava pouco estudada. Pareceu-me ser importante que uma instituição ligada à investigação se preocupasse em abrir a questão, respeitando-a.

Os dados que existem são preocupantes?

São preocupantes, e a expressão deles está nos jornais. Por exemplo, um idoso que morre sozinho na sua casa. Basta ser um para ser um fenómeno preocupante. Mas não é só um, são vários…
Agora soube-se porque a comunicação social fez eco. e aqueles que ninguém sabe e aqueles outros que, embora sem serem encontrados mortos, foram morrendo sozinhos? Porque ser encontrado morto significa que aquelas pessoas, se a morte não foi súbita, viveram um largo período da sua vida no estado de moribundos.
É terrível pensar-se nisso...
É preocupante. Se pensarmos que o suicídio juvenil tem expressão e muito a ver com o fenómeno da solidão, é preocupante. Outro exemplo: a violência doméstica. Uma pessoa que vive uma situação de violência conjugal é naturalmente uma pessoa que vive em estado de profunda solidão, que é prolongado e que é duradouro.
A solidão exprime-se muitas vezes por um grito, mas pior do que isso é não haver sequer, quantas vezes, a possibilidade de gritar ou então de gritar e não ser ouvido. estou a falar do grito no seu sentido simbólico.
Há outro aspecto que temos de ter presente, que é o sofrimento que quantas e quantas pessoas passam por viverem em situações de abandono, a tal solidão que não é escolhida… São dados preocupantes, que impõe solidariedade, e essa solidariedade tem de ser encontrada de várias formas. Uma delas é permitir que as pessoas possam viver saudavelmente sós, isto é, não obrigar as pessoas a viverem acompanhadas, e isso é uma responsabilidade da sociedade.

E então o caminho é “longo e doloroso” ou um “verdadeiro prazer”?

Digamos que o caminho é difícil, que o itinerário de quem sofre da solidão é que, muitas vezes, é doloroso…
Se contribuirmos para a tal convivência saudável com a solidão, por pouco que seja, será um prazer.

Entrevista conduzida por Maria João Leite 


  
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Edição:

Edição N.º 193, série II
Verão 2011

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