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O multiculturalismo falhou... o senhor que se segue?

O que se encontra em rastilho é o último (se não, talvez, o único) dos universalismos humanistas: o direito à liberdade, à justiça e à dignidade humana. O que potencialmente está a florescer é o exercício da expressão cívica num contexto de opressão consentida e tolerada pelo chamado mundo livre ocidental.

Infelizmente não pelas melhores razões, a ideia da falência do multiculturalismo foi proferida pelo actual primeiro-ministro inglês, o conservador David Cameron, acrescida de uma outra talvez ainda mais perturbadora: o multiculturalismo de Estado falhou e os jovens muçulmanos estão cada vez mais vulneráveis à radicalização, leia-se fundamentalismo islâmico.
Estas palavras vêm já na sequência do mesmo posicionamento protagonizado pela chanceler alemã, Angela Merkel, ou pelos actos administrativos e policiais contra os imigrantes que o governo de Sarkozy tem vindo a realizar em França, ou pelas políticas discriminatórias de Berlusconi na Itália desde há alguns anos. Na verdade, o que a frase de Cameron representa é, sobretudo, a confirmação e consumação do liberalismo musculado que se avizinhava há já algum tempo e que perdeu agora todo o seu estado virginal. Digamos que os processos eleitorais na Europa recente têm vindo a expandir este tipo de posicionamentos e até a acolher alguns êxitos de partidos de direita nacionalista que vão ainda mais longe no discurso xenófobo e racista contra a imigração na velha Europa.
Slavoj Zizek, o filósofo radical esloveno, usou a provocativa frase “com essa esquerda, quem precisa de direita?” para comentar a actuação da esquerda no período posterior aos atentados de 2001 em Nova Iorque, Londres e Madrid e que permitiu que a ideologia hegemónica se apropriasse da tragédia e impusesse a mensagem de que era necessário escolher um lado na “guerra contra o terrorismo”.
Foi, aliás, o que a administração Bush pregou incansavelmente durante quase uma década, em uníssono com Blair, Merkel e outros... Mas para aquele autor, a tentação de escolher um dos lados das barricadas deve ser evitada, porque quando as escolhas parecem muito claras, a ideologia encontra-se no seu estado mais puro, obscurecendo as verdadeiras opções. A “democracia liberal” não é a alternativa ao “fundamentalismo islâmico”, conclui. Todavia, também Zizek considerava o multiculturalismo um racismo invertido e uma política relativista hipócrita. Dizia que era necessário ter um certo código em que “eu não entendo o teu estilo de vida e tu não entendes o meu, mas podemos coexistir”.
Ora, justamente, os conflitos recentes no mundo árabe, dando conta da emergência revolucionária – poética, mas também violenta e ambígua – no Egipto, Tunísia, Marrocos, Iémen e talvez Arábia Saudita, podem ser ilustrativos e esclarecedores dessa limitação dualista que o “liberalismo musculado” tem vindo a proclamar: democracia liberal versus fundamentalismo islâmico.
Na verdade, o que se encontra em rastilho é, ou pelo menos quero acreditar que seja, o último (se não, talvez, o único) dos universalismos humanistas: o direito à liberdade, à justiça e à dignidade humana. O que potencialmente está a florescer nestes contextos é o exercício da expressão cívica – exactamente na proporção inversa à da afluência às urnas nas últimas eleições em Portugal – num contexto de opressão consentida e tolerada pelo chamado mundo livre ocidental.
A Praça Tahrir – que significa libertação, em árabe – foi o centro nevrálgico desta dramatização social. E o que encontramos ali parece ser um impulso único, um protesto seguro e convicto, uma indignação intensa e persistente, mesmo face aos incomensuráveis instrumentos de violência que são os exércitos e as policias. Ora, ali floresce talvez o último universalismo que, acredito, precisamos cultivar – e que nada tem a ver com o cinismo multiculturalista das últimas décadas – e que é o direito (do mais fraco) à liberdade. Parece-me evidente que esta concepção em nada se assemelha ao desejo conservador dos “liberais musculados” de conceberem apenas para estes cenários, nestes últimos tempos transbordantes de universalismo humanista exemplar, o destino do fanatismo religioso e do caos económico ou de exigirem para os seus próprios países, agora definitivamente livres do (falso) multiculturalismo tolerante, a regra para a imigração do “ou te integras submisso ou é melhor partires”.
Paradoxalmente, o maniqueísmo a preto e branco deste liberalismo agressivo não é melhor (nem pior) do que o cinismo multiculturalista dos últimos anos, mas a pergunta fica: por que não olhar para estas praças de tahrir e aprender a exercer a democracia e a exigir justiça e equidade?

Paulo Raposo


  
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Edição:

Edição N.º 192, série II
Primavera 2011

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