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Decifrar as pedagogias culturais do presente

Cada vez mais, o alfabetismo cultural implica o domínio de gramáticas complexas que ultrapassam amplamente as versões mais simples de leitura e escrita que conhecemos e se expandem para um variado espectro de outras capacidades, habilidades e domínios de conhecimentos.

Poucos metros a minha frente, voltado para o mar, um garotinho aparentando três anos de idade, longos cabelos de pontas descoloradas esvoaçando ao sol sob um boné com a aba para trás, equilibra seu corpinho bronzeado sobre uma prancha de windsurf na areia. Com ampla bermuda de praia a lhe escorregar da cintura, tatuagem de henna no braço e pulseirinhas de contas naturais nos pulsos, ele tenta encaixar seus pés pequeninos nos suportes fixados na prancha. Feito isso, assume teatralmente poses de um surfista. Flexiona os joelhos e movimenta seu tronco e seus bracinhos como a cavalgar uma onda imensa. Bem próximos, seus pais o enquadram em sua microcâmera, ao que ele corresponde sempre com novos e insinuantes movimentos, dignos de um campeão do esporte.
Tal cena fez meus pensamentos viajarem pelas pedagogias culturais e mais uma vez me leva a refletir sobre o poder das imagens, da mídia, do espetáculo e do consumo na modelagem de nossas vidas hoje. Na descrição da cena, não mencionei as logomarcas a crivar de significados cada uma das ações que relatei. Assim como a prancha, as roupas, a câmera, os óculos de sol e outros artefatos dos adultos e do menino carregavam signos dos ícones fashion do momento. A cena, para além de expressar uma fantasia infantil de um dia de verão, está impregnada de sinais de um tempo em que ínfimos atos do dia a dia são demonstrações de pertencimentos distintivos de nossa posição no mundo, de como nos relacionamos e nos movimentamos nele. Indícios da sociedade de consumidores estão por toda a parte.
A performance do garotinho pode ser vista como resultado dos múltiplos agenciamentos a que tem estado submetido no curto tempo de sua existência. Em aproximadamente três anos, as grandes corporações empresariais da atualidade já imprimiram suas indeléveis marcas em sua vida. Algum herói midiático da Nickelodeon ou da Disney certamente inspirou a escolha da tatuagem. Comerciais de TV, revistas e montras sugeriram o uso irreverente de uma bermuda de praia bem maior do que o tamanho adequado, assim como modelaram os demais detalhes do visual: estilo dos cabelos, do boné, pulseiras, corpinho bronzeado e ágil. Videoclipes em canais esportivos ofereceram incontáveis lições sobre performances corporais de surfistas, ensinando como corpos em movimento atraem a atenção e convertem pessoas em estrelas da mídia. Sua imagem infantil performática, a circular em breve nos sites de relacionamento por iniciativa de seus pais, será a culminância de ensinamentos sobre o que é bom e desejável, sobre o que se deve fazer, o que é importante e vale nas sociedades de hoje.
Nesse quadro, seria ingênuo persistir concentrando na escolarização e nos professores expectativas por uma educação que faça diferença na formação de crianças e jovens. De que forma poderiam fazer frente ao desafio de educar esses seres do fantástico início do século XXI? Que chegam à escola já formatados pela cultura contemporânea da mídia, do consumo, do espetáculo, da visualidade.
O habitat midiático em que nos movemos está crivado de artefatos culturais poderosos, carregados de sinais desses tempos e implicados em questões de história, política, poder, cultura, consumo e pedagogia. Tudo é fascinante, curioso, estratégico, sutil, perigoso, para o bem, o mal e suas infinitas intersecções. Não há nada inócuo que possa ser negligenciado, tudo é produtivo. A cada momento somos convocados a entrar em ação! Nas contemporâneas sociedades de consumidores, as mídias dirigem-se a sujeitos “pró-ativos”. Você sente que deve imediatamente começar a fazer o que elas sugerem, tendo como único critério os ganhos para sua própria vida. A eficácia dessa pedagogia está materializada na cena descrita do garotinho que recém abandonou as fraldas.
Uma legião de publicitários, fotógrafos, jornalistas, psicólogos, artistas, gestores, designers, ilustradores, consultores, editores, especialistas e técnicos das mais variadas e emergentes áreas trabalham duro para chamar nossa atenção, superar nossas resistências e convencer-nos de que confiar neles, seguir seus ditames e adotar os modelos que nos oferecem é o melhor caminho, garantia de atualidade e sucesso. Em tudo isso, o intento central sempre é fazer-nos adquirir alguma coisa, material ou imaterial. Como diz Wim Wenders, cineasta, no conhecido documentário «Janelas da Alma»: “a imensa maioria das imagens que nos circundam tentam nos vender algo”.
Assim, cada vez mais, hoje, o alfabetismo cultural implica o domínio de gramáticas complexas que ultrapassam amplamente as versões mais simples de leitura e escrita que conhecemos, e se expandem para um variado espectro de outras capacidades, habilidades e domínios de conhecimentos. A Escola e seus professores estão preparados para fazer frente às refinadas expertises que subsidiam a composição dos discursos e textos dos sofisticados artefatos midiáticos de comunicação e informação que formam os consumistas dos nossos dias?

Marisa Vorraber Costa


  
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Edição:

Edição N.º 192, série II
Primavera 2011

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