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Os caminhos da escola e os trilhos da vida

Através de um trabalho etnográfico com alguns alunos que estiveram pelo menos 10 anos sem estudar, procura-se compreender o como e o porquê do regresso à escola, a sua trajectória social, as motivações, as preocupações e as transformações na vida pessoal e profissional.

“(…) Eu era assim uma criança um bocado rebelde… Depois fiz o 6º ano, no 5º reprovei, era assim uma aluna um bocadinho fraquinha; aliás, a minha primária foi sempre a passar um bocadinho com dificuldades. No 5º fiquei retida, e depois, não sei, aquilo fez-me bem e tirei boas notas na segunda vez que repeti o 5º ano, e no 6º também. E depois não havia dinheiro, não havia condições para poder continuar a estudar, fui trabalhar, para casa de um casal de professores cuidar de dois bebés.
(…) Aos 16 anos, pedi à minha mãe para experimentar a vida religiosa, porque a irmã mais velha dela é religiosa. Estive lá até aos 21 anos.
Depois de 3 anos fiz o 9º ano, entrei num período de experiência em que eu entrava num período de clausura, chamado noviciado, em que nós tínhamos que parar a formação… Em termos de estudo, mas continuávamos com formação interna, própria da vida religiosa, onde estive um ano e pouco. (…) Mas eu era muito jovem e não tinha experimentado nada, sempre ali fechada desde a infância, desde pequenina, e então eu pedi para sair”.
“Depois, em Setembro, matriculei-me no Liceu em Ourém, à noite. Eu trabalhava numa pastelaria. (…) Naquela modalidade que era por unidades capitalizáveis, (…) fiz o 10º, o 11º e 12º em dois anos. Em 2003 concorri a Serviço Social, em Santarém, mas não entrei, e cinco anos depois voltei a tentar, mas aqui em Leiria. (…)
Estou apaixonada pelo curso em si e tive uma oportunidade muito boa. Acho que aproveitei um bocado, muitas aprendizagens, muitos conteúdos assimilados, deu para pôr em prática, em muitas cadeiras, em muitas unidades curriculares, muitas coisas que aprendi. Eu chegava à minha sala com o meu grupo, quando tinha essa oportunidade, e sempre… Tentei fazer como aprendi e acho que isso foi um estímulo muito grande, e às vezes dava comigo a pensar: pude agir diferente, porque já sei como agir diferente, posso conversar, posso esperar, posso tentar ver de outra forma. Eu entendo a outra pessoa, principalmente a criança, que às vezes è difícil de entender”.
Neste relato, a experiência aparece como formadora da prática. Trilharam-se caminhos nem sempre paralelos à escola, a tomada de consciência de que o saber adquirido na escola era fundamental para colmatar a vida pessoal e profissional incentivou ao regresso desta mulher, que voltou em busca de saberes e trouxe para a instituição escolar a experiência, a (auto)formação adquirida ao longo da vida. Esta narração biográfica permitiu observar a transformação que tem feito ao longo do seu curso. Mais do que aprender Matemática ou línguas, conhece-se, (re)descobre-se através de um processo reflexivo que lhe possibilita a auto-análise e saber como se está tornando naquilo que é.
Enquanto docente da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais (ESECS) de Leiria, assisti, desde 2006, ao aumento de alunos em cursos pós-laborais. Grande parte não tinham realizado um percurso escolar contínuo: tinham ingressado no Ensino Básico há alguns anos, regressaram recentemente para concluir o Secundário, através do Ensino Recorrente, e só depois surgiu a entrada no Superior. Os cursos de licenciatura começavam a apresentar uma diversidade grande de alunos: não só de proveniência, mas sobretudo de idades, alunos jovens e outros menos jovens, com família constituída, com uma profissão, alguns com netos, outros já aposentados.
Atenta a estes fenómenos de mudança social, questionava-me. Quem são estes alunos? Por que abandonaram a escola? Por que retornam? O que buscam? Como é vivida esta experiência de retorno à escola?
Através de um trabalho etnográfico com alguns alunos da ESECS que entraram pela via “Maiores de 23” e que estiveram pelo menos 10 anos sem estudar – na sua maioria com origens no mundo rural, onde os seus pais detinham baixa escolarização – tem-se procurado compreender o como e o porquê do regresso à escola, a sua trajectória social, as motivações e preocupações e as transformações na vida pessoal e profissional através da observação directa e entrevistas etnobiográficas.

As histórias de vida, como salienta Christine Josso, permitem às pessoas fazer um balanço retrospectivo das suas vidas, considerar os recursos, os projectos e os desejos que são portadores de futuro. São metodologias hermenêuticas que buscam a interioridade dos sujeitos através das representações, ideias, sentimentos, emoções, do imaginário, dos valores, dos projectos e das buscas que o constituem e o animam.

Sara Mónico Lopes


  
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Edição:

Edição N.º 192, série II
Primavera 2011

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