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A universidade neoliberal, a crise e a solidariedade

“Apesar destas barras da cela e dos guardas armados tentarem assustar-me e enfraquecer as minhas convicções democráticas, garanto que manterei a minha voz crítica intacta, assim como o meu compromisso em defesa da universidade pública e a busca por soluções políticas para o conflito armado e social que grassa na Colômbia”

Angel Beltrán

Nas últimas semanas, a nova coligação governamental no Reino Unido divulgou os seus planos para o Ensino Superior. Os orçamentos para o ensino vão ser cortados, as ciências sociais e as humanidades fragilizadas e as propinas vão aumentar das actuais cerca de £3.000 para £9.000 por ano. Acena-se com a privatização total do Ensino Superior. As mudanças planeadas irão levar os estudantes a contrair enormes dívidas, provavelmente irão afastar da universidade muitos dos que pertencem à classe trabalhadora, polarizar ainda mais o sector universitário e fragilizar as ciências sociais e as humanidades (áreas soft), por não contribuírem para o desenvolvimento e o rejuvenescimento da economia.
Parece-me que, para o governo do Reino Unido, a actual crise financeira surge como, para usar uma expressão de Naomi Klein (The shock doctrine), um mecanismo que justifica a reconfiguração da sociedade de forma a que esta privilegie os interesses da riqueza e do poder. As crises, argumenta, sejam económicas, ambientais ou de guerra, tornam-se uma oportunidade para fazer coisas que, em circunstâncias normais, parecem não ser possíveis.
Este sentido de crise no Reino Unido faz-me recuar à minha última visita à Colômbia, em Dezembro de 2009. Lá, a crise era menos económica e mais militar. Era a crise da guerra civil que justificava as reformas, mas o seu foco era, à data, também a universidade pública. Qualquer resistência à privatização e ao neoliberalismo nas universidades públicas colombianas era tida como uma prova de que havia uma intervenção da ‘guerrilha” no campus. Muitos académicos e estudantes tinham medo de se expressar devido a essa estigmatização, mas, felizmente, muitos outros não tiveram.
Uma dessas vozes dissidentes era a de Miguel Angel Beltrán, um académico colombiano que se recusou a ficar calado face à repressão. A sua história é, espero, simultaneamente elucidativa e inspiradora. A 22 de Maio de 2009, Miguel Angel Beltrán, durante a sua sabática no México, foi renovar o visto junto das autoridades de imigração mexicanas. Estava no país há sete meses, na Universidade Nacional Autónoma do México. Assim que entrou no edifício foi preso e deportado para a Colômbia, à revelia quer do seu direito ao devido processo legal, quer dos requisitos relativos ao tratado de extradição do México com a Colômbia. Chegado ao seu país, foi acusado de “rebelião” e de “conspiração para cometer actos terroristas”. Beltrán ainda está preso e a aguardar por julgamento. O governo colombiano alega que o nome de guerra de Miguel é Jaime Cienfuegos, um ideólogo e terrorista das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Alega, ainda, que foram descobertos documentos associados a Cienfuegos num computador apreendido no Equador no mesmo local onde Raul Reyes, um importante líder das FARC, foi assassinado a 21 de Março de 2008. Miguel nega estas alegações e defende que é ele a vítima de um governo que procura silenciar todos os seus críticos.
Miguel é um sociólogo na Universidade Nacional da Colômbia e tem-se oposto às reformas neoliberais que têm sido impostas nas universidades públicas colombianas. É, também, um porta-voz da crítica ao governo. Numa carta escrita na sua cela, em Agosto de 2009, ele reflecte sobre o modo como os sociólogos se têm tornado num alvo a abater no seu país. Afirma que, se, inicialmente, nos anos de 1950 e inícios dos 1960, a sociologia alinhava com as políticas do Estado, mais tarde tornou-se mais crítica e comprometida com a mudança social.
“Isto fez com que a disciplina passasse a ser vista, por alguns sectores sociais e políticos, como uma ameaça. Sem surpresa, o estigma de subversiva tem pesado significativamente sobre a sociologia. Desde então, a lista de sociólogos perseguidos e ameaçados devido aos seus ideais é longa”. Numa entrevista com o seu advogado, Gustavo Gallardo, em Dezembro de 2009, este disse-me que o único crime de Miguel foi atrever-se a manifestar-se contra as injustiças. O próprio Miguel diria numa carta posterior escrita na prisão:
“Apesar destas barras da cela e dos guardas armados tentarem assustar-me e enfraquecer as minhas convicções democráticas, garanto que manterei a minha voz crítica intacta, assim como o meu compromisso em defesa da universidade pública e a busca por soluções políticas para o conflito armado e social que grassa na Colômbia”. No início de Novembro, o University College Union – maior sindicato do Ensino Superior no Reino Unido – enviou uma carta ao governo colombiano, solicitando a libertação de Miguel. A petição foi assinada por mais de 1.000 académicos, incluindo professores e galardoados com o Prémio Nobel.
Ainda que seja apenas uma carta de apoio, a adesão de tantos académicos não deixa de ser impressionante. Penso que isto se deve, pelo menos em parte, ao facto de muitas pessoas admirarem os ideais por que se bate Miguel: o académico como voz crítica, uma voz de oposição, como uma voz dissidente. Estas são características que têm sido tristemente perdidas no Reino Unido, à medida em que fomos sendo apanhados nas malhas do capitalismo académico, na competição por bolsas e financiamento contra os nossos colegas. Esse será o ponto de encontro entre a luta de Miguel e o exemplo que ele nos dá, no qual o real potencial da solidariedade começa – na reciprocidade. Miguel Angel Beltrán pode servir como inspiração para académicos e estudantes no Reino Unido, para que desafiem os planos da nova coligação para as nossas instituições, para reclamar de volta o papel das universidades como consciência da sociedade e para usar a crise actual para transformar a nossa universidade e a nossa sociedade para o interesse de muitos e não apenas de alguns.

Mario Novelli


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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