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A mudança necessária e desejada é possível

Quando regresso à aldeia, por exemplo, peço sempre que me guardem batatas greladas. Isto, porque estabeleço uma relação entre a velhice das batatas – que quando começam a grelar já não servem para comer – e a velhice das pessoas...
De certa forma, acho que a batata continua viva, porque continua a desenvolver tubérculos, a crescer e a ganhar outras formas. As pessoas, na sua velhice, também podem deixar de ser úteis num determinado trabalho – naquilo que habitualmente se considera produtividade –, mas continuam a ganhar uma beleza e um desenvolvimento no seu aspecto. [Graça Morais, na pág. 84 desta edição]

Por vocação editorial, e tal como desejou o seu fundador, José Paulo Serralheiro, a PÁGINA cumpre a meta de periodicidade trimestral em acerto com as mudanças de estação previstas no calendário. Um modo simbólico de reafirmar a perseverança de um compromisso com a dimensão mais fecunda, dinâmica e esperançosa do tempo. Desta vez, a revista chega aos leitores na entrada de uma nova estação e de um novo ano civil e num período histórico ensombrado pela recessão económica, pelo aumento da pobreza, pela alarmante perda de salários e postos de trabalho e, de um modo geral, pela tendencial privação de direitos humanos fundamentais, conquistados ao longo de processos de luta admiráveis e muito sofridos. Sendo ainda certo que a “factura” mais pesada continua a cair sobre os mais indefesos e vulneráveis, ferindo assim de morte o ideal que faz pulsar a construção solidária da cidadania. Desde logo, e como lembra recorrentemente o sociólogo Robert Castel, a privação de condições básicas de subsistência e autonomização representa uma “amputação da cidadania social” e, por consequência, da cidadania política. O pleno exercício de direitos e deveres de cidadania é incompatível com situações de carência e dependência.
Este é, pois, um momento de “balanço crítico”. Um momento que reclama, talvez mais do que nunca, sensibilidade relacional, lucidez e ousadia reflexiva. O desafio em causa obriga a repensar modos de ser, viver e conviver, passando mesmo pelo que “habitualmente se considera produtividade”, como sugere a pintora Graça Morais, remetendo-nos para a lição essencial sobre as pessoas e a sua capacidade de metamorfose. Afinal de contas, o que significa “envelhecer” numa sociedade como a nossa?
Em que medida está a nossa sociedade preparada para acolher os ganhos civilizacionais resultantes do aumento de esperança de vida? Em nosso entender, esta interpelação constitui um desafio incontornável da racionalidade educacional contemporânea, tanto numa perspectiva de pedagogia escolar como social.
Em 2010, Portugal celebrou o centenário da sua primeira república, considerada uma “época de ouro” no que se refere ao desenvolvimento cultural e sociopolítico do país e à emergência de processos de emancipação cívica, com destaque para a educação que, em rigor, constituiu um dos eixos estruturantes do projecto republicano. Coroando uma dinâmica de partilha e reflexão iniciada no primeiro número de 2010, com testemunho do saudoso Rogério Fernandes, a edição de Inverno oferece mais um conjunto de textos sobre Educação e Res Publica, alguns deles gerados a partir do Colóquio promovido pela PÁGINA e pelo Sindicato dos Professores do Norte (SPN), a 2 de Outubro, e prestigiado com o contributo de nomes como Hernández Diáz, Manuel Loff, António Teodoro, Paulo Sucena e Mário Nogueira. Sem esquecer o texto de Ana Brito Jorge, pela pertinência da chamada de atenção em relação ao papel qualificado e distintivo das mulheres.
Em 2010, Portugal associou-se às iniciativas do Ano Europeu de Combate à Pobreza e à Exclusão Social que, em termos gerais, visavam mobilizar o poder político e toda a sociedade civil para este combate urgente. Apresentamos nesta edição uma primeira apreciação sobre este Ano Europeu. Como podemos constatar, a par de uma visão global positiva, verbalizada designadamente pelo coordenador nacional, evidenciam-se algumas frustrações. As organizações não governamentais alertam para o facto de as representações sociais dos portugueses sobre a pobreza e as suas causas continuarem a ser bastante conservadoras, indicando necessidade de formação a este nível. Na verdade, vivemos tempos muito difíceis que pedem mais democracia, mais justiça e solidariedade. Mais e melhor educação, portanto.
Com estas preocupações em referência, em 2011, a PÁGINA procurará estar especialmente atenta às questões que se prendem com o lugar da educação na promoção de condições de coesão e justiça social, seguindo assim uma linha de aprofundamento do tema Educação e Res Publica. Continuaremos nesse sentido a desenvolver contacto com as escolas e com outros espaços educacionais e cívicos, num apelo reforçado ao contributo de investigadores, educadores e, em geral, de cidadãos interessados. Por último, dirigimos um pedido muito especial a todos os amigos, leitores e colaboradores.
Em 2011, a PÁGINA, mais uma vez em parceria com o SPN, propõe-se promover uma homenagem a José Paulo Serralheiro que deverá culminar com uma iniciativa pública no mês de Outubro. Ao longo destes dois anos foram muitos os que nos digiram mensagens de saudade e apreço pelo modo ímpar de ser e fazer do Zé Paulo. Pedimos agora que nos façam chegar sugestões, indicação de disponibilidade, textos ou outros registos que nos ajudem a concretizar, com afecto, alegria e muita esperança, este projecto.
Num contexto de depressão colectiva, favorável a derivas totalitárias e ao predomínio de respostas sociais de carácter assistencialista, este tipo de memória – responsável, solidária e prospectiva – constitui, certamente, um dos melhores antídotos contra a descrença e o conformismo. Como se diz num dos textos em evidência nesta edição, afinal, “os sonhos também ganham taças”. Sonhos que, neste caso, se querem democrática e prodigamente coloridos, à medida da igualdade que deve brilhar no rosto de casa ser humano.

Porque a mudança necessária e desejada é possível, façamos juntos um 2011 mais lúcido, solidário e justo!

Isabel Baptista 


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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