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Filmes de infância ou filmes sobre a infância?

Frequentemente, os filmes de infância revelam processos figurativos, narrativos, lineares. Existe, no entanto, uma outra categoria, que transita de modo impreciso entre a ficção e o cinema real, na qual se tenta o mais possível abandonar o terreno da narração, na busca de uma imagem diferente ou mais justa da infância.

Porque falar em filme de infância e não de filme sobre a infância? Principalmente porque a infância, ao longo do tempo, passou do papel de simples sujeito, de temáticas de histórias, àquele de matéria-prima única. Nesta perspectiva, a designação de “filme sobre a infância” parece bem restritiva face aos múltiplos matizes que configuram as intenções mais diversas desses filmes.

Outro aspecto que importa precisar é que a infância presente no cinema diz respeito às crianças cujas idades vão de 6 a 11/12 anos com término, em teoria, na pré-adolescência ou até mesmo na adolescência. Unicamente em teoria. É difícil estabelecer um limite rigoroso, pois não há nada mais vaporoso ou impreciso do que a marca “criança” no cinema. A infância no país cinema é uma linha flutuante, como se fosse marcada sobre a água.

Frequentemente a idade é um pouco abstrata, um pouco informal, mal situada. Veja-se o caso de colocar um ator mais idoso desempenhando um papel de alguém com uma idade menor, ou inversamente colocar uma criança que parece mais madura do que as outras para representar um papel de alguém com idade superior á sua.

Um dado paradoxal merece referência: trata-se da constatação de que são unicamente os adultos que escrevem histórias sobre crianças, mas o inverso não ocorre. Assim, são unicamente estas pessoas – estes intrusos – que se encontram na impossibilidade mais completa de vivenciar tudo aquilo que só as próprias crianças podem fazer. É este fato que instaura toda a fragilidade, mas também toda a beleza dos filmes de infância. O que faz com que um filme de infância alcance legitimidade decorre unicamente de sua qualidade final e não pelo fato da presença de seu único sujeito ou do simples fato de ter sido ele mesmo, um dia, criança.

Existe um vínculo imutável e invisível que une os seres humanos uns aos outros. Esse vínculo é um capital comum de emoções que jogam um papel muito claro na maioria das histórias que falam da infância. Possuímos uma paleta de emoções com sua gama de cores e de matizes cuja definição e domínio não nos pertencem. Por mais que procuremos vivenciar as coisas de modo diverso, da maneira mais extravagante possível, não podemos evitar que as emoções finais sejam mais ou menos idênticas para todos. O capital emocional que cada um de nós possui não se preocupa em saber se nossas opiniões são ou não contraditórias. Uma declaração de amor na Antiguidade produz o mesmo efeito que dois mil anos mais tarde. A perda de um ente querido em 2006 tem o mesmo valor que a perda ocorrida em 1940. Estranhamente, todos nós somos levados a crer que as crianças de hoje são extremamente diferentes das crianças de ontem, o que, de maneira nenhuma, impede que os adultos das duas gerações tenham, sem dúvida, através do tempo, a mesma nostalgia ou a mesma repulsa. Se os tempos mudam, as emoções perduram.

Porque o cinema que filma crianças é, naturalmente, um cinema que vai se basear na emoção, utiliza de maneira abundante o recurso ao grande plano ou ao plano próximo. E não utiliza esse procedimento unicamente para dar importância aos atores e para os colocar em pé de igualdade com os colegas adultos, mas para evitar toda a erotização do sujeito. Quando se filmam crianças, observa-se uma tendência em captar mais os rostos do que os corpos. É uma lógica adotada com muita freqüência e da qual resultam conseqüências diretas sobre o emocional.

Na maior parte do tempo, os filmes de infância revelam processos figurativos, narrativos e, frequentemente, lineares. Suas histórias estruturam-se em torno de um fio condutor claramente estabelecido. Uma grande parte desses filmes prioriza a ficção, como E.T. de Spielberg, e Harry Potter e a Pedra Filosofal de Chris Columbus.

Existe, no entanto, uma outra categoria, que transita de modo impreciso entre a ficção e o cinema real, na busca de outras infâncias, de outros possíveis, como Los Olvidados (Buñuel) e Fanny e Alexander (Bergman). Uma categoria minoritária, apaixonante para alguns, limitada para outros, na qual se tenta o mais possível abandonar o terreno da narração, na busca de uma imagem diferente ou mais justa da infância.


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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