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Solidariedade

Estávamos início dos anos 60 do século passado. A escola, porque era a única escola da pequena vila, era uma escola mista. Mista em género, com rapazes e raparigas, mista em classes, pois a professora tinha meninos da 1ª à 4ª, e mista em grupos sociais. Estávamos lá todos. Os filhos dos caseiros, os filhos dos camponeses, a filha do dono da mercearia, os filhos da Josefa, a nossa cozinheira, as filhas do barbeiro, o filho da recoveira, os filhos do albardeiro, a filha do chefe do posto dos correios, eu, a filha do Senhor Doutor, e o Almerindo, o filho do carteiro.
O Almerindo tinha que fazer a 4ª classe para fazer a única coisa que ele queria – ser carteiro. Toda a sua vida se resumia a esse único desejo, ser carteiro. E dizia-o de tal modo, que, para ele, era ser carteiro ou não ser nada, não ter vida.
Quando terminámos a 4ª classe, um grupo de cinco alunos, a professora propôs-se levar-nos a exame. Era uma coisa séria. O exame era feito noutra escola, na sede do concelho e alguns de nós iam ter direito a um par de sapatos novos, outros a promessa de um relógio. A professora estava nervosa. Levar alunos a exame era uma grande responsabilidade, e ela não queria ser mal vista. Em princípio nem deveria estar muito preocupada. Eu e a Margarida, filha do chefe do posto dos correios, éramos as melhores alunas, e havia também dois rapazes sem problemas. Mas o problema, o verdadeiro problema, era o Almerindo.
Era a terceira vez que o Almerindo ia a exame. E não conseguia passar. As dificuldades do Almerindo eram grandes, mas em situação de exame eram ainda maiores. Almerindo ficava bloqueado e não conseguia escrever uma vírgula. Os pais do Almerindo foram à escola, falaram com a professora, até já queriam que o Almerindo desistisse para ir fazer outra coisa. Mas o Almerindo, debulhado em lágrimas, apesar de ser mais velho que nós, insistia, obstinado:
– Eu quero ser carteiro.
E para ser carteiro, o Almerindo tinha que fazer a 4ª classe. O tempo do exame aproximava-se. O trabalho da professora intensificava-se. Todos fazíamos o melhor que podíamos, tentávamos ajudar o Almerindo, mas tudo parecia inútil. A professora dedicava-lhe mais um tempo extra, mas o Almerindo parecia cada vez mais confuso e só repetia:
– Tenho que fazer a 4ª classe, eu quero ser carteiro!
Depois de muita ansiedade, depois de muitas tentativas falhadas para levar o Almerindo a uma resposta certa, a professora disse, de uma forma velada, que no exame, eu, a melhor a Matemática, e a Margarida, a melhor a Português, ficaríamos provavelmente uma de cada lado do Almerindo. E, quem sabia?, talvez o pudéssemos ajudar. Atrás e à frente do Almerindo ficavam os nossos colegas, rodeando-o como que para participar numa batalha colectiva – o Almerindo tinha que passar! A passagem do Almerindo tornou-se o grande objectivo da turma. A corrente solidária atravessava toda a classe e, mesmo sem falarmos disso, os cinco que íamos a exame, íamos também para que o Almerindo passasse.
No dia do exame, ficámos de facto de cada lado do Almerindo. Sem percebermos muito bem como, quando terminámos o nosso, acabámos a fazer também o exame do Almerindo. Eu, a Matemática; a Margarida, o Português. No final, quando saíram os resultados, o Almerindo teve melhores resultados do que nós... Não nos importámos nada. A nossa batalha, orientada por uma grande solidariedade, estava ganha – o Almerindo já podia ser carteiro!
Hoje, cerca de 40 anos depois, encontrei o Almerindo. É carteiro lá na terra.

Angelina Carvalho

Universidade do Porto (colaboradora do CIIE/FPCEUP)


  
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Edição:

Edição N.º 190, série II
Outono 2010

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