Página  >  Edições  >  Edição N.º 190, série II  >  Os usos do futebol

Os usos do futebol

Desde sempre a Filosofia duvidou. A dúvida é o seu gesto instaurador. Por isso, com algumas excepções, nela tudo é anti-Ordem e anti-Poder. O futebol, ao invés, procura sofregamente o apoio do Ter e do Poder e expande-se, desenvolve-se, com Ordem e Medida. Por outro lado, também o Ter e o Poder precisam do futebol para legitimar-se. De facto, as selecções nacionais, as equipas mais repre sentativas dos vários países, representam interesses desportivos mas, sobre o mais, interesses mediáticos, comerciais, publicitários, políticos. Os desempenhos das selecções e dos clubes encontram-se intimamente ligados aos desempenhos dos serventuários do grande capital.
Chegou, portanto, a altura de questionar se o carácter eminentemente formativo do futebol, como desporto que é, não desaparece diante da lógica de outros interesses incapazes de assumir uma intervenção pedagógica global. É que o Ter e o Poder são declaradamente despóticos, ou seja, têm uma Verdade indis cutível e o futebol, que os serve, transforma-se na expressão corporal dessa Verdade.
O futebol concorre mesmo à interiorização, em cada dos seus agentes, dos veredictos imperiais do déspota. Não é por acaso que as práticas dopantes nele permanecem; não é por acaso que o alto rendimento é sempre acompanhado de produtos farmacêuticos, os mais sofisticados; não é por acaso que são cada vez em maior número as doenças súbitas que atormentam os jogadores de futebol; não é por acaso que o Desporto (e portanto o futebol) é uma Actividade Física ou, segundo alguns, um meio de Educação Física – e quanto mais físico o Desporto for, mais acéfalo e acrítico será e mais servilmente representará a vontade do Ter e do Poder.
Por sua vez, o treinador, sempre que se refere aos jogadores que trabalham sob as suas ordens, repete, de forma exaustiva e massacrante: os meus jogadores. Como se, de facto, os jogadores fossem mesmo dele! Mas não é assim que pensa o déspota quando exclama: meu povo? O treinador, para ser um profissional exemplar, para a ideologia dominante, só tem de imitar o déspota. E assim como o Poder diz trabalhar para o povo, para mascarar a sua função constitutiva (a repressão), também os treinos, os estágios, as competições se resumem ao exercício de uma soberania astuciosa que controla os atletas como quem comanda singelos títeres. Não são os agentes do futebol que fundam o futebol, mas o Ter e o Poder, com a sua libido dominandi, geradora de violência. De facto, no futebol, a Lei e a Ordem nada têm a ver com a Justiça, mas com a delimitação do espaço onde se movimentam o senhor e o servo, dentro de uma competição insanável que forma o devir histórico do futebol de há cem anos a esta parte.
O pensamento único neoliberal (a ideologia dominante) é o que faz, no futebol e no mais: um mundo de riqueza, cercado de pobreza por todos os lados, onde funcionam a liberdade, o livre comércio e o livre mercado, tão intimamente associados que deles surge, dominador, o capitalismo neoliberal. Que admira que, também no futebol, coexistam os ricos e os pobres, os senhores e os servos? O Real Madrid, o Barcelona, o Bayern de Munique, o Manchester United, o Chelsea, o Manchester City, o Inter, o Milan e poucos mais são os senhores; os demais são os servos.
Aliás, este futebol é o que gera: senhores e servos. E produz, assim, uma certa imagem da essência da sociedade, onde os antagonismos, típicos do capitalismo, aparecem como causa de manutenção do status quo. O aumento galopante do desemprego nos países desenvolvidos está a empurrá-los à pobreza do Terceiro Mundo. Entretanto, o povo delira e aplaude este futebol... É um truísmo afirmar que o Capital capitaliza o futebol. De facto, o Capital procura, acima de tudo, o lucro. O Cristiano Ronaldo não seria tão publicitado se as suas qualidades físicas – as outras pouco importam – não despontassem, na Imprensa, na Rádio e na Televisão, de mãos dadas com determinados produtos... que é preciso vender!
Em nenhum modelo invasor, ou inspirado de fora de um “ethos” livre e libertador, se descortina o escrupuloso respeito da dignidade das pessoas e da sua capacidade de, no Desporto, serem sujeitos – ser sujeito é não sujeitar-se – e não objectos. Ora, hoje, o futebol, preso nas mãos férreas de um capitalismo imoral, não é uma prática libertadora e construtiva, mas uma cilindragem opressora e destrutiva. De prática autocontrolada pelos “homens do futebol”, no seio do futebol, passou-se a uma prática heterocomandada longe e contra os “homens do futebol”, que deixam de ser os agentes da sua profissão para surgirem, na praça pública, como réus de crimes que não cometeram.
De que pode acusar-se o Dunga, o Carlos Queirós, o Maradona e outros mais, treinadores vacilantes e de muito pouca eficácia no Mundial 2010? Da ausência de liderança? Da canhestra leitura de jogo? Da incomunicabilidade treinador-jogadores? São itens a sublinhar, designadamente pelos presidentes das respectivas federações, que escolhem e contratam os treinadores. Mas pouco mais!...
Se é pacóvio apontar qualquer determinismo sociológico nesta “floresta de enganos” que é o Desporto (e portanto o futebol), também não nos é lícito julgar a competência de um profissional, como se, na totalidade que é uma equipa, fosse ele o único elemento a ter em conta. O quarteto mais avançado da selecção argentina, no Mundial da África do Sul (Tevez, Messi, Higuaín, Di Maria), tem admiráveis jogadores de valor intacto. Diante da Alemanha, nos quartos-de-final, pareciam simples principiantes, submissos pela força e a robustez dos teimosos lutadores que são Lahm, Schweinsteiger, Khedira e os demais das linhas recuadas e pela velocidade e os primores técnicos dos jogadores da linha avançada, que – quando disparavam a correr, bebendo o vento, quais Pégasos imparáveis – não havia argentino que os segurasse. Será Maradona o único e o principal culpado pela derrota? E será Joachim Low a causa, excluindo outras, do jogo triunfal da Alemanha, no dia 3 de Julho de 2010?
Entre informar e imbecilizar a distância é mínima, e não se analisa o trabalho global de uma equipa desportiva senão dentro do todo que ela é e do todo onde ela se insere. Os prodigiosos progressos da Genética e da Biologia Molecular permitem-nos conceber os laços indestrutíveis entre a Física, a Química e a Biologia, dado que é pela organização, e não unicamente pela matéria, que a vida se distancia do mundo físico-químico.
Por isso, diante do inêxito do futebol português no último Mundial, há que levantar a pergunta seguinte: a Federação Portuguesa de Futebol preparou-se, problematizando-se e reorganizando-se, para o Mundial da África do Sul? E sabe o Dr. Carlos Queirós que todo o progresso, ao nível do conhecimento, é inseparável da consciência do erro? Onde errou ele e a sua equipa?
O que mais me surpreende no futebol português é, em plena consciência do fracasso, predominar a tendência conservadora. Talvez porque o futebol se destina, principalmente, a satisfazer as exigências do mercado. A questão é pertinente: num desporto absolutamente mercantilizado, pode encontrar-se algum compromisso com a moral? É que não conheço um capitalismo eticamente viável. Ora, é à luz de um futebol (repito-me) totalmente mercantilizado que é possível percepcionar, hoje, os usos que dele se fazem...

Manuel Sérgio

Universidade Técnica de Lisboa


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

Edição N.º 190, série II
Outono 2010

Autoria:

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo