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Estrangeiros e bolsas de doutoramento: vicissitudes de um regulamento espartano

A tutela da Ciência e do Ensino Superior passou a exigir um certificado de residência permanente para os candidatos estrangeiros a bolsas de doutoramento em universidades nacionais. Isso significa que cada candidato deverá possuir residência em Portugal há pelo menos 5 anos.

Na Grécia antiga, o conceito de estrangeiro (xeno) distinguia pessoas nascidas fora de uma dada cidade apesar de poderem eventualmente pertencer ao mundo helénico. Esparta foi justamente conhecida pela sua forte “xenofobia” para com o Outro. Atenas, por sua vez, atraiu gregos de outras partes da Grécia e não-gregos: comerciantes, filósofos, arquitectos, matemáticos. Apesar de ficar famosa por receber bem os xenos, tão numerosos na cidade que formavam um grupo social (os metecos), a democracia ateniense acabou por não lhes dar direitos políticos.
As democracias europeias contemporâneas reservam, talvez paradoxalmente, alguns traços desta ambivalência grega no que concerne ao tratamento dos “seus” estrangeiros. Encontramos um recrudescimento da xenofobia em muitos países europeus, quer nas retóricas eleitoralistas quer nas práticas legislativas.
Nesse cenário, Portugal tem sido, apesar de tudo, um dos países que se tem mantido mais próximo do modelo ateniense do que da bitola espartana. Mas, obviamente, isso não exclui Portugal das diversas manifestações de um mais ou menos surdo, invisível e subtil racismo que discrimina indivíduos de outras paisagens culturais no emprego, na escola ou na vida quotidiana.
Até há bem pouco tempo, e no que concerne à presença de estrangeiros em universidades e centros de investigação, Portugal era uma das nações europeias que mais paritariamente tratava aqueles estudantes e investigadores. Programas de atracção de estudantes estrangeiros para as licenciaturas em universidades nacionais, como o Erasmus, manifestaram crescimento muito relevante e foram potenciadores de ambientes académicos mais cosmopolitas. Bolsas de doutoramento e pós-doutoramento concedidas a estrangeiros a estudar em universidades e centros de investigação nacionais – e, portanto, a pagar propinas ou a contribuir para o crescimento científico e de massa crítica no país – eram cerca de 20 em 1994, mas em 2008 esse número chegou a perto de 250, de acordo com os dados da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Na verdade, estes valores referem-se, respectivamente, a cerca de 13% e 30% do total de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento atribuídas em 2008 em Portugal.
Recentemente, a FCT decidiu, ao abrigo de justificativas ambíguas, que vão desde o cenário de crise internacional aos argumentos de paridade com o tratamento dado a portugueses em estados europeus e ao algo absurdo comentário do ministro da Ciência e Ensino Superior, Mariano Gago, que invocava a necessidade de abrandamento de um período de atractividade de massa crítica estrangeira para os centros de investigação e academia portuguesa.
Gostava de sublinhar, todavia, que quer esta equipa ministerial, quer as diversas equipas que têm tutelado a FCT, mantiveram ao longo destes últimos anos um distinto e exemplar tratamento no que se refere ao acolhimento de estudantes e investigadores estrangeiros, contrariando os inóspitos e estéreis ventos que sopravam do resto da Europa e permitindo assim que o ambiente de internacionalização crescente de centros e universidades fosse uma constante. O que se passou, então, de 2008 em diante?
Subitamente, a tutela da Ciência e do Ensino Superior passou a exigir um certificado de residência permanente – de acordo com os termos definidos pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) – para os candidatos estrangeiros a bolsas de doutoramento em universidades nacionais. Isso significa que cada candidato deverá possuir residência em Portugal há pelo menos 5 anos!
Um absurdo óbvio, como se pode facilmente entender, ou talvez apenas um subtil mecanismo administrativo para limitar tais candidaturas. Pode perguntar-se o que tem a residência a ver com o mérito e a qualidade de um candidato a uma bolsa...
De acordo com a tutela, o novo regula-mento não exclui os estrangeiros sem certificado de residência permanente, uma vez que estes podem candidatar-se a programas de doutoramento financiados pela FCT – que, recorde-se, recebe fundos da União Europeia – e que estejam ao abrigo de acordos internacionais, como os da Carnegie Mellon University, Harvard, MIT, Austin Texas e outros que possam ser criados no futuro.
A questão é que estes acordos – politicamente negociados pelas mais altas instâncias – são pequenos oásis num enorme deserto de negociações entre universidades nacionais e estrangeiras e que tiveram direito a ampla promoção mediática e política. Todavia, existem já múltiplos convénios, protocolos, redes e acordos entre centros e universidades nacionais e estrangeiras. Será apenas uma mera questão de hierarquia e diferenciação no campo da distinção entre ciências exactas e outras áreas científicas? Uma aposta exclusiva em certas áreas das ciências exactas, da gestão, das tecnologias? Ou nos modelos (actuais) “ricos e de sucesso” de produção científica?
Felizmente, a presidência da FCT suspendeu em boa hora a aplicação deste regulamento espartano (pelo menos neste ano). A questão é, obviamente, mais complexa do que aqui se tenta resumir e, certamente, argumentos válidos podem ser arrolados em diversos sentidos. Todavia, o que seria certamente um bom começo, seria procurar no quadro europeu – afinal, o quadro de onde uma parte substancial dos financiamentos são oriundos – um regime de paridade, de equidade e de livre circulação de estudantes e investigadores no acesso ao ensino e à investigação em território europeu. E nesse respeito, Portugal parece ter, nestes últimos anos, um excelente perfil de democracia e cosmopolitismo académico e de resistência à discriminação para contribuir para uma melhor Europa.

Paulo Raposo

Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa


  
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Edição:

Edição N.º 190, série II
Outono 2010

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