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"Aprendemos uns com os outros, mediados pela nossa relação com o mundo"

Tendo concluído o curso de Magistério Primário em 1981, no Porto, Ariana Cosme é licenciada e doutorada pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Universidade do Porto (FPCEUP), onde lecciona (Grupo das Ciências da Educação) e é membro do Centro de Investigação e Intervenção Educativas. Interessa-se pelas áreas de estudo sobre Profissão Docente e Intervenção Pedagógica dos Professores, Aprendizagens e Mediações Didácticas e Intervenção em Contextos Educativos Formais. Para além das funções docentes, integra/ou várias coordenações de pós-graduações e de mestrado. Ainda na FPCEUP, coordenou o Gabinete de Educação Contínua (2000-2009) e integrou o Conselho Directivo (2001-2004) – integrou, também, o Conselho para a Educação Contínua da Universidade do Porto e a Direcção do Instituto Paulo Freire de Portugal. Colaboradora permanente da PÁGINA, Ariana Cosme é autora e co-autora de múltiplos artigos e diversos livros (Portugal e Brasil) e tem participado em projectos de formação contínua de professores em áreas como a Avaliação Educativa, o Projecto Educativo, a Contextualização da Intervenção Educativa, a Organização do Trabalho Pedagógico e Áreas Curriculares Não-Disciplinares.

Esta edição da PÁGINA vai sair numa altura em que se celebram o centenário da implantação da República e o Dia Mundial dos Professores. A Internacional da Educação definiu como lema A Recuperação Começa com os Professores, considerando que os docentes desempenham um papel fundamental na reconstrução social, económica e intelectual dos territórios e sociedades afectados por situações de crise económico-financeira ou de catástrofe natural. A República apostou no combate ao analfabetismo para mudar mentalidades. A instrução era a finalidade da Escola, depois passou a falar-se de aprendizagem. Mais recentemente, estes dois paradigmas têm vindo a ser postos em causa. Para uma especialista das Ciências da Educação, que paradigma “veste” a Escola de hoje?

Nós vivemos um tempo em que o debate sobre o papel dos professores, da Escola e da Educação está longe de gerar consensos. Um tempo em que a Escola se afirma com alguma incerteza, porque deixou de ser entendida como tábua de salvação para as questões da afirmação social – há licenciados desempregados, mas, por outro lado, a taxa de desempregados baixa para metade entre os licenciados, o que significa que há aqui um potencial de esperança para a Escola. Que, para a opinião pública, aparece fragilizada enquanto ferramenta de afirmação social e profissional. É neste tempo que se debate o papel da Escola, responsabilizando-a também pelo sucesso económico do país. E eu acho que este é um peso muito grande. Se, por um lado, é interessante reconhecer a relevância da Escola também para a afirmação de bem-estar económico e social do país, por outro, isso é um factor de grande pressão que acaba por comprometer modelos de trabalho que a Escola devia pensar com alguma autonomia e responsabilidade – não sozinha, não isolada, mas sem essa pressão externa. Por outro lado, pais e comunidade pressionam a Escola no sentido de oferecer um projecto escolar o mais completo possível. E há, ainda o reconhecimento de que hoje as comunidades são, também elas, educativas – a Escola já não exerce sozinha o papel de educação e de formação. Durante séculos, isso parecia estabilizado, mas hoje é claro que a comunidade é educativa, as cidades são educadoras, os parceiros são educadores – podem estar a exercer influência num sentido que nós achemos mais ou menos interessante, mas exercem-na. Portanto, a Escola de hoje não está sozinha no espaço de formação. Partilha-o com outros contextos, com outros actores.

E reconhece e aceita essa partilha, ou...

Pode não reconhecer que a televisão tem um papel importante, mas a televisão exerce influência educativa: os alunos vestem-se como na TV, cantam as músicas que lá passam, consomem o iogurte que ela vende... É impossível não reconhecer que há outros actores, outros agentes, que exercem influência educativa. Pode viver fechada a este reconhecimento, mas do meu ponto de vista seria uma ingenuidade. Há outros parceiros – a comunidade, os pais, as associações – e a Escola disputa com eles os papéis. E o que hoje acontece, e se torna fonte de grande pressão, é que para esses parceiros todos sobrou a fatia da relação prazerosa, da relação lúdica, e para a Escola ficou quase só o papel da relação com o trabalho, o esforço escolar, o mérito, o prémio, a significação…

Isso não tem a ver com a exigência de “mais instrução” e “menos jogo”, que a sociedade, a opinião pública, os fazedores de opinião, lhe vêm colocando?

O problema é que, nas últimas décadas, a Escola viu-se submetida a uma pressão tal que acabou por não conseguir cumprir o papel da instrução nem o da educação. Porque, reivindicando ela, também, o papel da educação, nenhum dos seus profissionais aceita hoje ser visto como um mero instrutor, um domador de um qualquer métier disciplinar, seja Física, Geografia ou Música, e porque partilha o mandato de educar com outros actores – e eles não alienam essa responsabilidade, ou pelo menos a afirmação dela. Portanto, neste momento, a Escola corre o risco de não estar a desempenhar de forma eficiente o papel da instrução, nem de forma interessante o da educação. Porque não é possível educar sem uma instrução forte, no sentido de ferramentas de aprendizagem fortes. Não se educa na base da iliteracia – ninguém sai da Escola formado em cidadania sem ler e escrever, interpretando o mundo e os seus direitos, deveres e responsabilidades com fluência, segurança e maturidade. Agora, não é possível reservar para a Escola o papel da instrução. Penso que vivemos um tempo de reconfiguração do sentido e do desfio da Escola, que passa por pôr em causa o velho modelo da intrução escolar. E penso mesmo que algum do mal-estar que os docentes enfrentam sobre o sentido da sua prática, o sentido da porta aberta – mas afinal eu tenho a porta aberta para quê? – tem a ver com a necessidade de se romper com este modelo da instrução. Que não serve às sociedades contemporâneas. Não serve aos desafios que hoje se colocam às comunidades. O António Nóvoa fala com grande pertinência da importância de a Escola “emagrecer funções”. E quando ele fala de emagrecer funções, não fala de um projecto mitigado de educar para a democracia, para a liberdade e para a cidadania – é porque ele diz que a Escola foi chamada a participar em tantos projectos de educação (ambiental, alimentar, sexual...), que a dada altura não está a fazer bem nenhum papel. Não se trata de um retorno ao back to basic, não estamos no tempo disso. Nenhum de nós, profissionais da educação, aceitaria hoje que o sentido e a natureza da acção profissional passasse por ensinar a ler, escrever e contar… Mas a Escola precisa mesmo de emagrecer funções, porque está a ser chamada – e os seus profissionais também – a fazer tanta coisa e coisa nenhuma.

INSTRUÇÃO, APRENDIZAGEM, COMUNICAÇÃO: POSSIBILIDADES E CONSTRANGIMENTOS

Pela forma como organiza o espaço e o tempo do trabalho dos alunos, eu tenderia a dizer que a Escola ainda continua muito colada ao modelo da instrução. Quando falamos de pedagogias da instrução, falamos de formas de pensar o espaço-tempo pedagógico centrado na figura tutelar do professor, que domina a informação e que espera que os seus alunos, na reprodução desta informação, se apropriem de ferramentas com que leiam a vida. A verdade, sabemos hoje, é que isto não é possível, porque a reprodução da informação não é a apropriação dela. As pedagogias da aprendizagem representam um avanço enorme em relação a isso, falam na importância do protagonismo dos alunos na responsabilidade do aprender. Sendo interessantes – porque falam de devolução, de orientação clara, de responsabilidade do aprendente –, do meu ponto de vista, relegaram algumas vezes para segundo plano a responsabilidade do professor, como se lhe bastasse criar algumas condições de trabalho para que os alunos progredissem nas aprendizagens. Falando quase em auto-suficiência dos alunos, enfim, de alunos saudáveis, com contextos educativos facilitadores, era quase como se pudéssemos dispensar a influência educativa dos professores. Desafio maior, sobre o qual eu e o Rui Trindade temos vindo a escrever, é o das pedagogias da comunicação, campo onde a questão das relações se aprofunda mais para garantir a influência educativa. Aqui, o professor não pode ser pastor nem anjo-da-guarda, tem de ser interlocutor qualificado. Não está discreto, resguardado, a apoiar o aluno quando ele precisa, nem é o tutor que orienta – tem de ser mais do que isso. A turma é um espaço de comunidade que aprende, e aprende com o professor. Hoje, parece-me muito mais importante falar deste espaço a que o Rui chama “pedagogias da comunicação”, eventualmente muito resgatado da influência freireana, da importância da relação. Hoje, se calhar, o mais interessante na Escola é resgatar este tempo de relação, de comunicação, entendendo a turma como uma comunidade de aprendizagem, numa lógica democrática, cooperativa, partilhada, de crescer juntos, alunos e professor.

Independentemente dos programas, do currículo? Ou estes são constrangimentos que implicam redefinição?

Esta forma de construir o trabalho docente é perfeitamente compatível com o desenho curricular nacional em vigor. As escolas não são ilhas, nem os professores, nem as suas turmas. Nós estamos balizados por um contexto legal que desenha competências e finalidades essenciais para a aprendizagem dos alunos. E isso é perfeitamente compatível, e até mais compatível, com uma prática docente vocacionada para o desenvolvimento das relações de comunicação e de aprendizagem do que propriamente com o modelo de instrução.

Mas há quem considere haver demasiadas disciplinas e quem defenda o encurtamento dos programas, ajustando-os, por exemplo, à realização das provas de aferição…

Claro que se pode perguntar se o cenário educativo em Portugal promove uma pedagogia da comunicação. Eu posso dizer que há constrangimentos. Mas também há possibilidades. O sistema educativo está desenhado para promover cenários e práticas docentes de natureza pró-activa, emancipatória, próximo do campo das pedagogias da comunicação. Citando Paulo Freire: Ninguém ensina nada a ninguém, mas ninguém aprende sozinho. Os homens aprendem mutuamente, mediatizados pela realidade. Portanto, a tarefa de ensinar acabou, foi um mito que Bruner, Vygotsky e outros ajudam a perceber. De verdade, quem aprende é o sujeito, o individuo aprendente. Mas ninguém aprende sozinho – aprende com os outros, aprende mediado por uma relação de influência educativa que o mundo exerce. E isso responsabiliza profundamente a Escola, e os seus profissionais, na criação de condições para que os aprendentes tenham as melhores condições para aprender. Ou seja, os alunos não dependem do professor para aprender, mas precisam dele – do professor criador de condições, do professor que organiza a relação e a comunicação. E apesar dos constrangimentos de um sistema educativo que poderíamos pensar não facilitador, que tem um programa prescrito, eu conheço espaços de sucesso educacional.

Perante esses constrangimentos, que margem de manobra sobra para o professor?

Não é que margem, é que responsabilidade! Quando o professor ajuda a construir o debate sobre o sentido do poder educativo, sobre o sentido do projecto curricular da escola, ele não precisa de margem para se libertar das orientações – pelo contrário, ele implicou-se no seu desenho. Cabe-lhe, depois, organizar a sua sala, criando condições para que os alunos se apropriem das grandes linhas do projecto educativo, da forma concretizada no projecto curricular. E ainda bem que o projecto educativo existe para além dos professores que, em Julho ou Setembro, são colocados em cada escola. Ele é o documento que torna clara a opção educacional de uma comunidade, que existe para além dos professores que lá chegam numa dada altura. Mau era se as comunidades estivessem à mercê dos projectos pessoais que cada professor leva à sua chegada! Isso é que seria o descalabro… Ainda bem que temos “balizas” que dizem: calma, com vocês ou sem vocês, em Julho ou em Setembro, esta comunidade permanece, tem estas características e este projecto de trabalho. Ao professor compete adaptar-se a essa linguagem que, em sede de Conselho de Escola, a comunidade delineou como mais interessante. Portanto, eu não entendo o projecto educativo e o projecto curricular como limitadores da acção do professor. Não a comprometem. São documentos que a orientam e balizam e que resultam do que a comunidade entendeu. Claro que se ele discorda, se lhe parece que aquilo está subavaliado, subprojectado, então deve intervir no conselho de docentes, no pedagógico, e relançar o debate, tentando promover um novo caminho. Não pode é libertar-se...

(RE)PENSAR AS POSSIBILIDADES ÉTICAS DO ACTO EDUCATIVO

Apesar de as últimas políticas ministeriais terem vindo a comprometer margens de autonomia relativa que os professores tiveram durante anos – e por isso terem comprometido algum caminho percorrido e alguma emancipação –, continuo a entender que é possível fazer mais e melhor. Mas para isso temos que discutir para que serve a Escola. É que eu acho que continuamos a não fazer as perguntas certas. Para que serve a Escola hoje, num país mesclado de migrantes que saem e que entram, um país que não é agrícola, nem fabril, nem piscatório? Para que precisamos da Escola? De que Escola precisamos? Eu penso que a discussão das possibilidades do sentido do trabalho escolar é absolutamente necessária, e este debate está longe de estar feito. A nível de políticas legislativas para a educação, não temos tido um fio condutor, coerente; vamos tendo uns saltos no escuro e alguma legislação avulsa. Mas, mesmo quando, às vezes, é desenhada de forma interessante, a seguir vem outra que atropela e compromete. E a dada altura, escolas e profissionais já não sabem com que linhas se orientar. Nas escolas, alguns professores têm feito este debate: porque têm contextos favoráveis, porque são nichos de professores inovadores... E há algumas escolas que se pensam muito bem enquanto comunidades escolares – porque são territórios de intervenção prioritária, e a propósito deste mecanismo, tiveram que se pensar. Ou seja, há professores que têm feito este debate, mas ele está longe de ser um debate feito pelos professores. Também há especialistas que têm este debate feito, mas há outros que o têm feito noutras direcções. E há políticos que não o têm feito. Mas mesmo que todos o tivessem feito, estaria absolutamente longe de ser consensual, porque é claramente perceptível que estamos em territórios diferentes, a falar de coisas completamente diferentes.

E o que falta para se realizar esse debate?

Neste momento, temos cada vez mais gente a discutir como é que vamos educar melhor, como vamos treinar os alunos, fazendo esta pergunta desamparada de um debate ético sobre o que é isso de educar. É como se tudo tivesse sido reduzido à componente da tecnologia didáctica. Neste momento, temos os professores e muitos profissionais das Ciências da Educação preocupados com a eficiência de como educar melhor, como se estivéssemos a falar de técnicas mais ou menos apuradas. Falta resgatar o debate para um campo anterior, que é o campo das possibilidades éticas do acto de educar. Mais do que perguntar como educar melhor, eu acho que temos de perguntar o que é isso de educar. E é preciso trazer os professores para este debate.

Quem deve mobilizar essas vontades, os professores ou a tutela?

Acho que isto pode ocorrer de diferentes maneiras. A partir dos sindicatos dos professores, das suas associações profissionais e científicas, dos movimentos autónomos, dos territórios de intervenção prioritária… Ou seja, pode partir das periferias, e durante anos tivemos grupos de trabalho que foram pressionando neste sentido e procurando uma lógica de desenvolvimento profissional das suas comunidades. Mas também podem ser medidas do ministério a despoletar um compromisso interessante de desenvolvimento profissional. Há territórios educativos, a propósito da recente experiência dos TEIP, que, por força de mecanismos logísticos e financeiros, conseguiram dar o salto para um tempo de debate sobre a questão do desenvolvimento profissional e da redefinição do trabalho docente, com reflexo em opções concretas de alteração nas práticas profissionais de organização das escolas. E porque não há um desenho nacional para repensar as escolas de intervenção prioritária, foi cada território que desenhou a sua forma de responder. Portanto, isto pode acontecer nos dois sentidos: partindo do centro alguma provocação, mas também serem as comunidades a fazer este caminho. Eu acho que este caminho se pode fazer nos dois sentidos, e este é claramente um tempo de fazer caminho. Não podemos continuar à espera de que a transformação chegue por via de um diploma legal.

E os professores terão disponibilidade (tempo) para mais compromissos? Estarão motivados?

É verdade que o facto de os professores terem cada vez menos tempo para pensarem a sua sala de aula e a sua acção enquanto profissionais da educação, compromete este esforço. Eu sinto que as coisas estão difíceis, mas não estão paralisadas. E acho que nenhum professor pode evocar a paralisia de uma acção pró-activa, do ponto de vista profissional, por força do cenário português. Mas também tenho medo que grupos de professores se atirem às mudanças numa lógica de voluntarismo pedagógico, porque vaticino maus resultados. Não terão um enquadramento legal favorável, não terão louros nem comendas no 10 de Junho, não serão benquistos na sua comunidade escolar, serão vistos com alguma desconfiança… Eu acho que este movimento de pensar e repensar as possibilidades de exercer a acção docente tem que ser feito sem voluntarismos, de forma reflectida, profissional, a partir das condições que se tem e com as condições que se tem. E há hoje uma série de parceiros que podem ajudar nestes debates: as universidades estão cada vez mais disponíveis; os sindicatos (desde logo o meu e a federação a que pertence) são claramente um parceiro qualificado para discutir as questões da profissão para além dos direitos e deveres; e também reconheço condições às associações profissionais e científicas. Portanto, os professores não estão sós. Há uma série de parceiros que podem ajudar a pensar e a fazer frente a medidas legais que, de alguma forma, ponham em causa ou comprometam esta necessidade de mudança. Não podemos manter a Escola como há 50 anos, numa lógica classificativa, de prestação de provas, em torno de um Secundário que termina no acesso à Universidade, mas só para 30% dos alunos. E os outros 70?

Estamos no início do ano lectivo e volta a sentir-se um certo mal-estar escolar, alguma intranquilidade, se não mesmo turbulência. Reorganização da rede escolar (com encerramento de centenas de escolas e criação de mega-agrupamentos), regresso do processo de avaliação, Estatuto do Aluno… Como perspectivas este novo ano?

Sim, este não tivemos 200 mil professores na rua… Mas, de verdade, todos esses factores criam perturbação e, principalmente, vão contribuir para um mal-estar que se vai agudizar, porque todos eles vão interferir na forma como se entende o trabalho e como se entende ser professor. Os mega-agrupamentos… A maior parte destas medidas tornam-se desinteressantes porque em Portugal há a tendência de universalizar as medidas. Se calhar, até faz sentido num ou noutro contexto geográfico, mas noutros não. O problema da maior parte das medidas do ministério é a universalização delas e o pronto-a-vestir uniforme que se aplica ao país inteiro, como se o que serve a uns servisse aos outros. E isso é uma inverdade em Educação. Pegar em tudo quanto é comunidade isolada e fazer deslocar as crianças para mega-agrupamentos não tem sentido se feito desta maneira. Agora, nalguns lugares, o transporte das crianças justifica-se para a quebra de isolamento. De verdade, este é um trabalho que deveria ter resultado de um estudo casuístico. E houve imensos contributos: estou a pensar na academia (houve dezenas de estudos, mestrados, doutoramento), nas associações sindicais e profissionais… Hoje há dados na mão. Não parece é ter havido vontade política para resolver as coisas de forma diferenciada…

Nem para considerar algumas experiências externas...

Nós andamos sempre em contra-ciclo. Enquanto noutros países o que se está a fazer é pôr de lado e abandonar o modelo das mega-escolas, onde os alunos perdem identidade, perdem história – onde eles próprios se perdem, porque exactamente não tem identidade nem história –, nós estamos a fazer o movimento inverso. Os outros a procurarem comunidades mais pequenas, onde as respostas são mais diferenciadas, mais localizadas, mais adequadas aos contextos e às dificuldades. Nós, que somos um país pequeno, a criar territórios gigantescos, onde claramente se vão perder condições de atendimento. Se com 200 ou 300 alunos, temos a possibilidade de localizar as dificuldades e de as atender rapidamente – e a ideia é que quanto mais depressa eu atendo as dificuldades, mais depressa consigo gerar sucesso –, com 600-700-800, vamos perder os fios de ligação aos alunos e a possibilidade de dar respostas localizadas, contextualizadas e integradas.

Essa espécie de "recentralização" terá repercussões na Escola Pública?

Isto só se coloca como difícil à Escola Pública, porque é ela que vive da diversidade do público a atender. Uma escola massificada, a dar os primeiros passos no que seja de concretizar o sucesso ao nível do 3º Ciclo, a caminhar para a obrigatoriedade de 12 anos de escolaridade e a viver ainda de tensões muito grandes com um passado recente de baixa escolarização. E se nós queremos um projecto educativo nacional de relevância cultural e social, ele não tem que ser despesista, certo, mas também não pode ser pobre no sentido da ambição e da missão. E eu receio que esta lógica burocrática de uma solução economicamente apetecível esteja a comprometer a Escola Pública. No último estudo da OCDE, nós estamos a meio da tabela dos países que gastam mais dinheiro com a educação. Portanto, não somos uns despesistas. Reconhecendo e ouvindo falar sempre do Ministério da Educação como um ministério caro – porque presta um serviço público que não tem preço, que é o projecto educativo nacional.

Relativamente à direcção das escolas, o fim da “gestão democrática” não vai colidir com (ou ser constrangedor para) uma Escola que tem cada vez mais e mais complexas respostas a dar?

Enquanto investigadora, não tenho informação suficiente. Na FPCEUP não trabalhamos esse campo. Fundamentalmente, só se trabalha no Minho e em Lisboa. Mas como professora que iniciei o meu trabalho no 1º Ciclo, parece-me empobrecedora esta nova forma de organizar a direcção das escolas. Uma escola que tem desafios e exigências tão grandes do ponto vista da resposta escolar como resposta social precisa da militância, do empenho e do profissionalismo de toda a equipa que lá trabalha. Reduzindo a direcção a uma equipa de trabalho, receio que desvincule deste envolvimento o resto da escola e a comprometa como um todo, como uma comunidade. É que deixámos de falar da escola como comunidade e passamos a falar da escola com um rosto… E na verdade, tudo aquilo deixa de ser um projecto das pessoas daquela escola e passa a ser um projecto da direcção. E eu receio que mesmo um profissional tão especial como é o professor acabe por se desvincular. Afinal, vai militar em quê? Alguém imagina os professores a militarem num projecto que é do director X? Também sei que não era por via da votação directa que se cumpria a democratização dos projectos de debate pedagógico e da reflexão e do comprometimento cultural das escolas, mas este parece-me claramente um modelo mais comprometedor.

A publicação do Estatuto do Aluno pode ter alguma incidência significativa no quotidiano das escolas?

Não sei, não faço ideia... É uma falsa questão. Se o estatuto é para conquistar um espaço de eficiência ao nível dos problemas da disciplina e dos conflitos existentes na Escola, não vai ser por aí, de maneira nenhuma. Voltamos ao mesmo: temos problemas de indisciplina, de violência e de perturbação da vida das escolas e do funcionamento das salas de aula porque continuamos a trabalhar numa lógica organizacional do passado. Esse modelo não tem uma resposta capaz para os alunos deste tempo. A maior parte dos problemas de indisciplina e de perturbação das escolas estão relacionados com este desafio que a Escola tem hoje, que é responder de forma massificada a uma população altamente heterogénea.

A prevenção, ou resolução, desses problemas deve ser encontrada na Escola ou no exterior?

Não podendo ser ingénuos – e fazer de conta que os problemas sociais exteriores não afectam a estabilidade do funcionamento das escolas –, é claro que crianças e jovens que vivem em universos familiares disfuncionais terão muito menos paz do que os outros para viver com ordem o projecto escolar. Mas enquanto investigadora prefiro pensar na Escola enquanto espaço de responsabilidade para resolução dos problemas que ela enfrenta no domínio da indisciplina e da gestão para um bom funcionamento. Prefiro pensar nisso, e então, podendo compreender algumas coisas a montante e a jusante, é dentro da Escola que me preocupa encontrar respostas. E se eu pensar nos professores como profissionais que reflectem e fazem opções sobre a sua prática docente, que desenham respostas e a forma de se relacionarem e comunicarem – e voltando às questões da comunicação, que estabelecem e vivem num universo onde os canais de comunicação são facilitadores do debate, do contraponto de ideias e até da oposição de projectos entre alunos e professores –, são claramente os professores que vão resolver as situações de indisciplina e do funcionamento da escola com outra maturidade. Mas não pode haver ingenuidades, porque há territórios muito difíceis que são afectados por via da disfuncionalidade social. Mas à Escola, o que lhe adianta ficar resignada numa lógica fatalista de que o universo que a rodeia é assim?

Ainda a propósito da necessidade de redefinir o trabalho e a função docentes, que eixos que orientem esse debate?

Isso varia muito de investigador para investigador, conforme os quadros teóricos em que se situam. Os professores ultrapassarão o mal-estar associado a alguma insuficiência da sua acção quando se interpelarem enquanto profissionais de Educação, e eu entendo que esta possibilidade de interpelação conduz a uma nova forma de pensar e definir o seu trabalho a partir da forma como reconhecem o sentido do que fazem para influenciar educativamente os alunos com quem trabalham. Um professor que faz isto percebe melhor qual é a sua relação com os alunos e percebe melhor qual é sua influência sobre os alunos. Agora, se nós falamos num tempo de mudança de paradigma, significa que estamos a falar de um tempo de redefinição da acção docente. E se o que nós queremos é mudança de um paradigma de instrução para um paradigma de aprendizagem – mais do que isso até, de comunicação –, estamos a falar de os professores terem que redefinir a sua acção. Por isso, os professores vão ter, primeiro que tudo, de se reconhecer como influentes na acção educativa de uma forma mais completa, vão ter de reconhecer e trabalhar a partir da forma como se relacionam com os outros profissionais da escola que partilham com eles um conhecimento profissional, vão ter, ainda, de estabelecer relações com outros actores que também exercem influência educativa nesses territórios, sejam pais, auxiliares, animadores, os ATL ou os treinadores desportivos vizinhos… A forma como estabelecem relações com outros agentes de influência educativa vai também ajudá-los a pensar-se enquanto professores.

Para terminar, os professores como interlocutores qualificados...

Quando falo do professor como interlocutor qualificado, falo de um professor que – não negando a importância de contributos exteriores, de especialistas, de investigadores, dos profissionais com quem trabalha e interage, de leituras que faz – é capaz de se ler enquanto profissional a partir da prática que desenha na sua sala. Quando opto por trabalhar a leitura de uma maneira, quando opto por organizar a sala para trabalhar em projecto ou para uma aula expositiva, quando faço estas opções, eu quero pensar que faço as escolhas de uma forma qualificada, porque tenho em mente aquilo que quero atingir. Professor qualificado é o que se organiza para responder à questão o que é que eu espero dos meus alunos?, que, antes de dizer o que vai fazer, é capaz de pensar o que espera dos alunos, o que é suposto eles aprenderem com ele, o que é suposto fazer com eles durante o mês seguinte ou a próxima hora. Quando consegue pensar desta maneira a sua relação com os alunos, o professor está disponível para pensar novas formas de se adaptar à comunicação, à rede de trabalho, a propostas de trabalho… Não se trata de substituir o paradigma da instrução pelo da comunicação, ou da aprendizagem, porque eu não posso mudar o formato se antes não tenho esta inquietação. Se antes não sou capaz de me perguntar o que é que os meus alunos precisam de mim, eu não consigo desenhar a oferta adequada para aqueles alunos. E eu só digo isto porque vejo trabalhar assim – há professores que não abdicam de trabalhar assim. É difícil? É, mas é possível. Estes são os professores que, se calhar, cumprem melhor os objectivos a que se propõem a Lei de Bases e os documentos orientadores do ministério. Só se cumprem bem esses objectivos quando se trabalha desta maneira, quando sou capaz de me perguntar o que é que os meus alunos precisam de mim, o que é que é suposto que eles aprendam neste mês. E para aprender isso, como é que nos vamos organizar? Sempre ultrapassando a dimensão pessoal, e pensando que este é um trabalho colectivo – eu e a turma, como uma comunidade, crescendo juntos e aprendendo juntos. O que não significa que o professor desapareça de cena. Pelo contrário, mais do que nunca, ele é o elemento-chave na sala de aula. Mais do que nunca, hoje é o tempo de o professor se afirmar – com intencionalidade educativa. Um professor qualificado é um profissional que tem intencionalidade educativa subjacente a cada acção, a cada visita que faz, às gargalhadas que dá, ao futebol que joga no recreio. É o profissional que não se demite deste tempo, determinante para uma grande fatia das crianças portuguesas que têm a possibilidade de contactar pela única vez com o universo formal pensado de uma forma sistematizada para garantir cultura e organização. Um tempo, portanto, que não pode ser desperdiçado…

Entrevista conduzida por António Baldaia


  
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Edição:

Edição N.º 190, série II
Outono 2010

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