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O que Saramago não disse sobre Lanzarote

Quem se der ao cuidado de ler as dezenas de textos ultimamente produzidos por jornalistas, ensaístas, críticos e gente dada às letras em geral sobre José Saramago, há-de estranhar a ausência de uma explicação cabal sobre a escolha de Lanzarote para lugar de exílio, não se configurando o escritor como propenso a cenóbios ou eremitérios.

Liminarmente, dir-se-á que a resposta vem logo de Saramago, pela boca de Pilar, a sua melhor intérprete, em entrevista de 2007 ao «Expresso»: “Viemos viver para uma ilha, rodeados de vulcões, porque não nos interessa a vida social, não nos interessa o brilho e a espuma social”. Em 1993, quando o casal, depois de uma breve estada em 1991, se instalou em Lanzarote (por muitos viajantes considerada terra impensável), onde construiu uma moradia (a Casa) que habitariam durante 17 anos – declaradamente como reacção ao acto censório do Governo português, que em 1992 vetou a candidatura do romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo ao Prémio Literário Europeu – Saramago, logo nos primeiros apontamentos do seu Caderno de 1993, sublimando o “terrífico” cenário envolvente, também podia escrever:

O prazer profundo, inefável, que é andar por estes desertos varridos pela ventania, subir uma encosta difícil e olhar lá de cima a paisagem negra, escalvada, despir a camisa para sentir directamente na pele a agitação furiosa do ar, e depois compreender que não se pode fazer mais nada, as ervas secas, rente ao chão, estremecem, as nuvens roçam por um instante os cumes dos montes e afastam-se em direcção ao mar, e o espírito entra numa espécie de transe, cresce, dilata-se, não tarda que estale de felicidade. Que mais resta, então, senão chorar?

Mais tarde, depois de ter visitado Saramago, em 1997, na sua casa de Lanzarote, interroga-se Carlos Fuentes, em Março do ano seguinte, em Jalisco, no México, num discurso de homenagem ao já celebrado escritor português que iria ser contemplado, poucos meses depois, com o Prémio Nobel:

Primeiro pensei: esta ilha não existe, é uma miragem, aproximo-me de uma nave de pedra fantasmagórica ancorada frente à costa de África… Como é que pode existir uma ilha que não acaba de nascer, que ainda não teve tempo de fazer história? (…) Como pode este escritor escrever rodeado de cordilheiras debaixo do mar e areias de um azul mais intenso que o do oceano e do céu juntos? Que poderes possui Saramago para vencer com a sua pena, dia a dia, a natureza terrível, gelada e fervente ao mesmo tempo, desta ilha que devia permanecer, talvez para sempre submersa, parte da cratera do mar?

Saramago talvez tivesse respondido que um famoso filho da terra, o escultor César Manrique, depois de longos anos passados nos Estados Unidos, regressara a Lanzarote para transformar em obras de arte as rochas vulcânicas… Mas havia outras respostas que Saramago não quis dar: porque, a breve trecho, a “espuma social” invadiu a ilha da desejada tranquilidade, ainda antes da consagração pelo Nobel, e o escritor, solicitado em todo o mundo, mal descansava em Lanzarote. E porque as Canárias tinham pelo menos duas histórias ligadas a Portugal: uma que vinha de longe e que Saramago certamente conhecia, pois era bastante versado na História Medieval ibérica; outra, muito recente, por ter sido o lugar de exílio do monárquico-católico-apostólico-romano Paiva Couceiro, desterrado por Salazar como resposta a uma carta que aquele escrevera, em 1937, responsabilizando o ditador pelo atraso das colónias que as levaria ao separatismo. Eduardo Lourenço achava que Saramago tinha uma ideia muito própria de ser patriota. E Saramago chegou a dizer que uma casa não era uma pátria. Fará sentido que, pelo menos após a sua visita à ilha em 1991, Saramago quis informar-se sobre o significado do nome de Lanzarote aplicado à ilha mais oriental do arquipélago das Canárias, tendo na memória que a história da escravatura em Portugal começara por registar a entrega, em 1444, em Lagos, da primeira remessa de 235 “cativos” de África por um navegador português chamado Lançarote, cujo quinto revertia para o Infante D. Henrique. Mas isto depois de, entre 1425 e 1434, os primeiros colonos da Madeira, descoberta em 1421, já terem recebido como mão-de-obra para a exploração da cana-de-açúcar “cativos canários”, naturais das ilhas que lhe deram o nome.

Estamos no início das conquistas e descobertas, com D. Afonso IV a reinar em Portugal, em que o tráfico de escravos se torna num negócio ambicionado por Portugal e Espanha, provocando um conflito do direito de ocupação entre os “primeiros descobridores” das Canárias, que os espanhóis reivindicam desde

1336, aquando da viagem de um genovês, Lancelloto Malocelli (repare-se na semelhança dos nomes dos “navegadores”), e os portugueses contrapõem alegadas viagens anteriores, repetidas depois de 1339. O conflito, que chegou ao Papa, só foi dirimido em 1480, tendo Portugal reconhecido à Espanha “a posse ou quase possessão” das Canárias, ficando com o privilégio de expansão para o Sul.

Conhecido o iberismo de Saramago, que já no seu romance A Jangada de Pedra, de 1986, o leva a referir, de passagem, a velha questão de Olivença como a “mágoa histórica” de um seu personagem, já não surpreende o silêncio feito sobre o imbróglio histórico de Lanzarote, que um jornalista atrevido não desdenharia, hoje, levar às primeiras páginas, brincando mesmo: O que aconteceria se a Jangada de Pedra, que se desligou dos Pirenéus em direcção à América do Norte, rasando os Açores, rumasse em direcção ao Sul e embatesse com as Canárias, rasando Lanzarote?

Infelizmente Saramago já não poderia responder, mesmo efabulando, como lhe era grato refigurar a história.

Leonel Cosme

Escritor


  
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Edição:

Edição N.º 190, série II
Outono 2010

Autoria:

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