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Aprender com a BAUHAUS 90 anos depois

A minha relação com a Bauhaus é muito longa. Escrevi o primeiro livro sobre ela em 1973, quando era professor na Escola Superior de Arquitectura de Rennes. Nessa época, falar da Bauhaus era falar de uma escola subversiva, e em Portugal ainda pior, pois no contexto fascista era considerada uma escola de bolcheviques e judeus.
Nessa altura eu estava exilado e influenciado por uma ideologia marxista redutora. Escrevi então esse livro, que foi, de certa maneira, um elogio à obra de Hannes Meyer, que era comunista e foi o segundo director da escola, com uma actividade muito importante no que respeita às questões públicas e sociais, mas que foi ostracizado.
Depois do 25 de Abril, já em Portugal, dediquei-me mais profundamente à Bauhaus, como experiência de ensino que poderia ser útil na minha prática pedagógica na Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP). Fiz o doutoramento na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa com a tese A Bauhaus e o Ensino Artístico nos Anos 20 – Teoria e Prática, sob orientação do professor doutor José
Augusto França. Em 1987, publiquei esta tese, ligeiramente modificada, na Editorial Presença – estes livro, que se encontra esgotado, pretendia ser uma leitura plural e complementar das várias correntes da Bauhaus. Agora, revisitar e aprender com a Bauhaus é querer actualizar a experiência.
Normalmente as pessoas têm “óculos” ideológicos. Ao observarem a realidade, não conseguem distanciar-se da hermenêutica contextual em que se situam. É por isso que várias paralaxes são possíveis diante dum mesmo objecto. Por outro lado, a Bauhaus também teve posições díspares no seu interior. Por isso, não se pode hipostasiar uma única Bauhaus; seria não ver uma realidade complexa, feita de metamorfoses, e confundi-la com um cadáver do real.
Na segunda publicação que fiz, tenho já uma atitude diferente da primeira postura ideológica. Olhei as coisas doutra maneira. Já tinha mais idade, mais experiência como professor e visitei várias vezes a Alemanha. Consultei os arquivos da Bauhaus e tive ocasião de estudar os documentos originais. Ultrapassei a visão ideológica pela busca teórica e histórica do real. Não se trata apenas de busca de informação, mas da problemática do olhar epistemológico. Por exemplo, a pós-modernidade tem uma postura completamente diferente dos historiadores da modernidade: Charles Jenks lança uma série de suspeitas sobre o seu significado político, contrariando Gideon, para quem a Bauhaus é o modelo ideal de uma escola de arte.
A pós-modernidade desconstruiu mitos, como a imagem do director Walter Gropius, sempre igual a si próprio e sem inquietudes e perversões, e revelou, com intensidade, uma Bauhaus ocultada onde o papel de Joahnnes Itten foi preponderante. Contudo, essa mesma pós-modernidade também caiu num relativismo de valores, não reconhecendo o pioneirismo e as dificuldades de uma escola democrática, inserida num contexto de nazificação crescente. Vou tentar explicar isto através de uma famosa história-ensino soufi, que utilizei várias vezes nas minhas aulas e que pode ajudar a compreender esta complexidade da Bauhaus.
Na Turquia, sete cegos resolveram procurar a verdade. Então, dirigiram-se para o Oriente, onde nasce o sol e de onde vem a luz. Puseram-se a caminho, às apalpadelas, e um dia, já cansados e quase a desistir da longa viagem, embateram em algo que se encontrava no meio do caminho. Perguntaram-se entre eles o que seria, e, na tentativa de encontrar resposta, um dos cegos, Nass Redim, segurou qualquer coisa que estava à sua frente e disse: “Já sei o que é. É uma mangueira”.
O 2º cego, Avicenas, disse que não era nada uma mangueira, mas sim uma espada, pois tinha tocado em algo afiado. O 3º, Averróis, disse que não podia ser nada daquilo, pois ele tinha um abano à sua frente. O 4º, Aladino, disse que era um tronco de uma árvore e o 5º, Hassan, que era um muro, pois apalpava una superfície larga à sua frente. Arafat, o 6º cego, disse que também tinha um tronco à sua frente, e o 7º, Ibrahim, que tinha tropeçado numa corda.
Começaram a discutir sobre quem tinha razão e estavam quase em pé de guerra, porque não se entendiam – é assim a história das ideias expressa pelas ideologias dogmáticas; só se vêem parcelas da realidade, e esta visão parcelar impede a compreensão teórica, necessária para uma abordagem objectiva da história. Daí as antipatias a que assistimos nas lutas institucionais.
Nesta história, como não se entendiam, os cegos pediram ajuda. Um homem que por ali passava e que era um condutor de elefantes (cornaca) disse-lhes que tinham chocado contra um cadáver de elefante: aquele que julgou encontrar uma mangueira, estava a segurar a tromba; o que se picou no dente, pensava ter encontrado uma espada; o abano era a orelha do elefante; o tronco era a pata; a barriga o muro; a outra pata era o outro tronco; e o que tropeçou na corda tinha tropeçado na cauda do elefante.

Então, os cegos disseram:

– Um elefante é uma mangueira, uma espada, abano, troncos, muro e corda.

– Não – disse o cornaca – o cadáver de um elefante não é um elefante. Um elefante é um animal grande, brinca com as crianças, tem sofrimento e alegria e interage com o mundo.

A Bauhaus também não é apenas a realidade dos livros que se escreveram sobre ela. É preciso distinguir os níveis da realidade. Há muitos livros, muitos investigadores, muitos documentos – como os originais publicados por Wingler, que contêm o essencial da informação sobre a Bauhaus.
Eu li muito sobre a Bauhaus, artigos, livros, documentos, etc. Visitei Weimar, Dessau e Berlim, onde vivi alguns meses, entrevistando professores e consultando arquivos. Mas nunca vou chegar a saber o que era o clima da Bauhaus no seu tempo – quando nasci, já a Bauhaus tinha sido encerrada pela Gestapo. E ao querer estudar esta realidade, tive que inseri-la no contexto histórico e implicar as minhas reflexões na episteme dessa época. Voltando à história, os cegos perguntaram ao cornaca para que servia o elefante.

— Quando eu era pequeno, brincava com os elefantes. Os elefantes para mim são meigos, brincalhões, carinhosos e fantásticos. Mas o meu patrão, que é militar, usa-os para a guerra, porque o elefante pode ser também uma arma. Metem-lhe uma tocha acesa na orelha e ele avança para o inimigo, levando tudo à frente.

Muita gente se iludiu sobre a Bauhaus. Viram só uma parte da sua realidade, não tinham a agudeza de vista nem a vivência do cornaca. Com o fim da Bauhaus e a diáspora de muitos professores, houve várias tentativas de levar a experiência para outros sítios. Assim, nos EUA, Gropius, Mies van der Rohe e Moholy Nagy, explicitaram de modo diferente a escola da Bauhaus. Muitos aproveitamentos conduziram a experiência Bauhaus a formas contraditórias com a própria génese da escola – hoje, o estilo bauhaus é conhecido também como o estilo internacional, que é apenas uma caricatura daquilo que se fez na Bauhaus.
Outras diásporas explicitaram outras experiências. Na ex-URSS, Hannes Meyer tentou, sem sucesso, em pleno estalinismo, explicitar a linguagem plural do novo design bauhausiano. E depois da queda do nazismo, a escola de Ulmm, na Alemanha, fez abordagens no design e na arquitectura tendo como referência a experiência da Bauhaus de Weimar e Dessau. Mas também aí, contradições e pontos de vista diferenciados levaram ao insucesso da experiência.
Os contextos sociais e económicos e as formas políticas hegemónicas emprestam estratégias diferenciadas, subvertendo, muitas vezes, o sentido das propostas iniciais. Assim, a standardização como forma rápida e económica na construção das casas do bairro social de Dessau, realizada por professores e alunos da Bauhaus, não tem a mesma intenção que a industrialização em série de edifícios para especulação imobiliária.
É deste modo que, como na história dos cegos, o pacífico elefante se pode tornar na besta selvagem de uso militar. A distanciação histórica das várias experiências traz vantagens. Por outro lado, temos de ver a abrangência do problema e não apenas a análise circunscrita a elementos sectoriais. Por exemplo, há quem fale da Faculdade de Arquitectura como a Escola do Porto. Será verdade? Não haverá várias escolas dentro da FAUP? Há quem esqueça precursores vários como Viana de Lima, Octávio Lixa Filgueiras, Arnaldo de Araújo, António Quadros e outros, valorizando apenas o papel de Fernando Távora.
A história da Bauhaus tem a ver com isso. É feita de várias escolas e de vários mestres. Não há só a Bauhaus de Gropius. Há a de Gropius, a de Itten e também a de Meyer e van der Rohe. Há ainda a de Paul Klee, de Kandinsky, de Oscar Schlemmer e Gertrud Grunow. A Bauhaus é um processo em metamorfose, e os contextos históricos, políticos e sociais são de grande importância.
Na fase expressionista, a experiência relacionada com a formação da consciência alargada e da criatividade é decisiva. A experiência da competência funcional, da 2ª Bauhaus, com Moholy Nagy como pedagogo, na Vorkurs, é determinante. E na experiência social que Hannes Meyer introduziu, na relação com cooperativas e sindicatos, é particularmente importante. Por outro lado, van der Rohe, com as suas experiências sobre a forma, é uma parte da complexidade desse elefante vivo que é, simbolicamente, a Bauhaus.
Uma segunda história está no cerne da pedagogia da Bauhaus e, para mim, é a sua contribuição essencial no seu tempo. É a história de Platão, o mito do carro alado, contado em Fedro. Nesse diálogo, Sócrates explica que o Homem é uma completude com muitas singularidades e muitos níveis de realidade: somos uma carroça, o corpo físico; somos animais, as nossas emoções; somos um cocheiro, que coordena os cavalos entre si e governa cavalos e carroça; e somos também – para que haja uma ligação entre vontade, emoção e inteligência – o rei (sinónimo simbólico de consciência) que está dentro da carroça, pois é o único que sabe para onde vai, é o que dá sentido à viagem. Este sentido é, provavelmente, aquilo de que todos andamos à procura no sistema de educação para o século XXI.
A história da Bauhaus e a sua actualidade está aqui. Se nós a entendermos como uma grande complexidade sistémica, se entendermos que as contradições são fundamentais para aprender e que não há conceitos finais, então começamos a aprender a aprender. É necessário também que, quando nos aproximamos de qualquer coisa, tenhamos um cuidado hermenêutico, uma reflexão epistemológica, com a sabedoria de que os paradigmas mudam.
Aprender é, pois, muito diferente de estar informado. É muito diferente de ler livros, ouvir palestras. Aprender a aprender é vivenciar a experiência que recolhemos na interacção social. A Bauhaus percebeu que a escola tinha de ensinar a fazer, ensinar a aprender a aprender e ensinar a relacionar-se, adquirindo uma consciência alargada.
Também Grunow, Itten e Klee tentaram, quase de forma iniciática, desenvolver este alargamento de consciência nos jovens. Grunow procurava reflectir sobre os acontecimentos dentro da Bauhaus, no sentido de dar claridade e consciência a alunos e professores. Usou a expressão corporal, as relações cinestésicas (cor, som, dança) para criar auto-desenvolvimento, hetero-desenvolvimento e ecoformação.
A consciência alargada, a ética e a força intencional são o essencial da formação nos dias de hoje. A Bauhaus representou, nos anos 20 do século passado, uma primeira tentativa transdisciplinar, relacionando vários saberes (teóricos, tecno-operativos e expressivos) graças a obras didácticas em que se criava a unidade temática em projectos e em realizações comuns.
São exemplo disso as peças de design (roupas, móveis, brinquedos), as propostas de edificações (casa de Sommerfeld, edifício de Am Horn e o próprio edifício da Bauhaus, assim como o bairro social de Dessau), o teatro de rua, a banda de jazz, as esculturas sociais, etc.
Foram experiências exemplares de grande notoriedade, expressão de luta democrática de estudantes e professores contra a nazificação da Alemanha, que em 1933 a encerrou e ostracizou como escola subversiva, bolchevique e judaica. Mas, apesar do encerramento, os seus ideais pedagógicos e sociais continuam vivos, 90 anos decorridos desde a sua criação, em 1919-1920.

Jacinto Rodrigues

Universidade do Porto


  
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Edição:

Edição N.º 189, série II
Verão 2010

Autoria:

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