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À volta do umbigo

Em Janeiro, a UNESCO publicou um relatório sobre a avaliação global do programa “Educação Para Todos”. Trata-se de uma avaliação intercalar do objectivo que tinha sido apontado para que, em 2015, todas as crianças do mundo tivessem acesso à educação primária. Os resultados são decepcionantes.

O relatório refere que 72 milhões de crianças estão ainda fora da escola e que, por este andar, 56 milhões ainda o estarão em 2015. E isto porquê? Segundo Irina Bokova, directora-geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), “enquanto os países ricos alimentam a sua recuperação económica, muitos países pobres enfrentam um cenário iminente de atrasos educacionais. Não podemos permitir-nos criar uma geração perdida de crianças privadas da sua oportunidade de educação, que as poderia elevar do seu estado actual de pobreza”. No mesmo sentido, o coordenador do relatório, Kevin Watkins, escreve: “Os países ricos mobilizaram montanhas financeiras para estabilizar os seus sistemas financeiros e proteger a sua infra-estrutura social e económica, mas só conseguiram mobilizar pequenas colinas para os pobres do mundo”. E, na verdade, estima-se que faltam 16 mil milhões de dólares para conseguir atingir o objectivo da educação primária em todo o mundo, em 2015.
Estes números e opiniões são eloquentes. Antes de mais, por reporem uma verdade que a propaganda tende a ocultar – o apoio à educação em países em vias de desenvolvimento é completamente ineficaz até para remediar os aspectos mais básicos. Quando se sabe que a educação é a primeira e essencial condição para a existência de um desenvolvimento sustentado, verificamos que muitos Estados não colocam esta prioridade entre as mais prementes.
Mas também é certo que os países mais desenvolvidos não apostam suficientemente em criar as bases que poderão levar os países mais pobres a sair da pobreza. Estamos muito longe de um apoio efectivo que permita escorar a derrapagem para a (cada vez maior) pobreza de muitos países. Assim, a retórica de dinamizar o desenvolvimento local nos países pobres, para evitar as desesperadas migrações para os países mais ricos, também não é fundamentada em medidas concretas.
Podemos perguntar: e o que tem esta desafortunada situação mundial a ver connosco? As nossas carências ao nível educacional são de outra ordem e de outra escala.
Nos alvores da Revolução de Outubro, na Rússia, os revolucionários debatiam a questão de saber se seria possível haver socialismo num só país. Não teria que ser um movimento mundial? Afinal os que duvidavam que o socialismo num só país pudesse prevalecer tinham razão… A necessidade de alimentar uma política de preservação acabou por exaurir os recursos que deviam fazer das sociedades socialistas, não só igualitárias, mas sobretudo prósperas.
A pergunta é também esta: pode haver efectiva qualidade e inclusão educativa num só país? Em 2010?
Lembro-me de ver, no princípio dos anos 80, vídeos sobre as classes especiais de crianças com deficiência, em França. Eram classes com uma percentagem elevadíssima de crianças argelinas e portuguesas. Os colegas franceses eram tentados a dizer que os problemas eram importados pelos imigrantes. E também agravados pela sua própria condição de imigrantes, dado que, para além das condições de deficiência, havia a cultura, a língua…
Vivemos, em Portugal, situações que têm alguma simetria com esta, de há 30 anos: um número significativo de crianças de outras etnias e com outras capacidades desafiam o conceito de escola de qualidade. Mas será que podemos pensar que a escola de qualidade em Portugal é só para alunos portugueses? Os alunos de outras cidadanias não entram neste projecto? Pensar que a Educação pode passar incólume por toda esta heterogeneidade e desculpar-se com os males da globalização, seria um erro. Na educação pública ninguém se salva sozinho.
É tempo, pois, de – em lugar de continuarmos a olhar para o ponto de maior centralidade do nosso corpo, que parece ser o umbigo – olharmos para as periferias. Encaremos de que forma um sistema mundial sem solidariedade, sem justiça e auto-centrado tem contribuído para que os países mais pobres não disponham de meios que lhes permitam assumir os destinos das suas crianças.
É tempo de pensar que a Educação Inclusiva, para além de uma reforma educacional que se passa em cada um dos países (ricos ou pobres), é também uma postura ética mundial. Uma postura que recusa o fatalismo da exclusão escolar ou o acesso a uma Escola tão debilitada que seja incapaz de promover a mobilidade social.
Já sabíamos que era difícil pensar uma Escola inclusiva numa sociedade que não o fosse. Sabemos agora, pelos dados deste relatório, que o caminho da inclusão não deve respeitar fronteiras. Não são apenas as crises que são mundiais; as soluções também têm que o ser.
“Um conceito alargado de Educação Inclusiva pode ser visto como um princípio geral orientador para fortalecer a educação para um desenvolvimento sustentável, para a aprendizagem ao longo da vida para todos e acesso igual de todos os níveis da sociedade às oportunidades de aprendizagem” – das conclusões e recomendações da 48.ª Conferência Internacional de Educação (Genebra, 2008).
16 mil milhões de dólares!?...

David Rodrigues

Universidade Técnica de Lisboa, Fórum de Estudos de Educação Inclusiva


  
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Edição:

Edição N.º 188, série II
Primavera 2010

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