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Educação e desenvolvimento: agora somos todos soldados?

“Neste momento, como eu, e seguramente os nossos diplomatas e os nossos militares, as ONG americanas estão no terreno servindo e sacrificando-se nas linhas da frente da liberdade. (...) Falo a sério quando digo que devemos manter as melhores relações com as ONG, que são para nós uma força multiplicadora, tão importante como a nossa equipa de combate.”

[Colin Powell, ex-secretário de Estado dos EUA]

Este discurso de Colin Powell numa Conferência Nacional de Política Externa para líderes de organizações não governamentais (ONG) tornou-se um exemplo muito citado da crescente preocupação de muita gente da comunidade internacional do desenvolvimento acerca da cada vez maior militarização do sector. Quer dizer, as agendas das organizações humanitárias e do desenvolvimento estão a ser apoderadas pelos poderosos interesses militares do ocidente.
O ambiente pós-11 de Setembro levou os Estados Unidos da América (EUA) e outras potências ocidentais a darem prioridade à preocupação com o ‘terrorismo’ e a integrar todos os outros aspectos da política governamental sob o chapéu deste objectivo. Em Junho de 2008, a USAID [United States Agency for International Development] publicitou a sua nova ‘política de cooperação civil-militar’, explicando a sua abordagem “3Ds”, que incorpora a defesa, a diplomacia e o desenvolvimento, assumindo o desenvolvimento como um “elemento-chave de qualquer esforço governamental contra-terrorista e contra-insurreccional”. Vários governos ocidentais (p. ex. Austrália, Canadá, Rússia) seguem agora explicitamente esta abordagem dos 3Ds. Enquanto que, para alguns, o renovado compromisso dos governos ocidentais com a importância do desenvolvimento pode ser bem-vinda, para a comunidade do desenvolvimento, esta ‘perspectiva governamental’ traz consigo o perigo de ser hegemonizada pela ainda mais poderosa ala da segurança dos governos nacionais.
À medida que o fracasso no Iraque e no Afeganistão é cada vez mais evidente, assiste-se a uma crescente ênfase, por parte das forças de ocupação, nas estratégias do ‘coração e das mentes’ (ler desenvolvimento), a par das suas actividades militares. Isto levanta a questão de saber como é que as ONG internacionais, em zonas de conflito e de pós-conflito, separam os interesses ‘militares’ e de segurança e as suas actividades de ‘desenvolvimento’ e ‘humanitárias’.
A fusão da segurança com o desenvolvimento parece funcionar como um processo de reinterpretação dos objectivos e das práticas do desenvolvimento – perspectivando as suas actividades como possuindo um potencial de ‘benefícios de segurança’, ocupando o sector da educação um lugar central.
Uma ilustração desta prevalência das referências ao papel da educação nas estratégias contra-terroristas pode ser encontrada nos «Relatórios Nacionais sobre o Terrorismo» do Departamento de Estado dos EUA. Por exemplo, no relatório de 2007, Capítulo 5 (Paraísos de Segurança para o Terrorismo), a subsecção 7 centra-se na Educação Básica nos Países Muçulmanos, sublinhando um “aumento da atenção na educação em países predominantemente muçulmanos e naqueles com uma significativa população muçulmana. (...) O desafio foi o de aumentar a capacidade do país para fornecer acesso universal à educação básica e à literacia”. Claramente, no caso do Afeganistão, a educação tornou-se num campo de batalha central da guerra, e o mesmo parece estar a ocorrer na Somália e no Iraque.
O dilema para os trabalhadores voluntários da educação é que as estratégias antiterroristas e anti-insurreccionais das potências ocidentais estão a ser percepcionadas como veículo principal para o desenvolvimento de intervenções educativas. E se as actividades podem permanecer inalteradas, a sua representação discursiva significa que elas podem ser interpretadas como parte do esforço de guerra: modos civis de contra-insurreição, com o objectivo de ganhar os corações e as mentes e de produzir certos tipos de subjectividades.
A situação piorou com o estabelecimento, por parte das tropas de ocupação ocidentais no Iraque e no Afeganistão, de equipas provisórias de reconstrução, que, sob controlo dos militares, também levam a cabo actividades como a construção de escolas. Em 2009, uma aliança de ONG a operar no Afeganistão produziu um relatório condenando o comportamento das tropas de ocupação ocidentais. Alegaram que os militares (particularmente dos EUA e da França) continuavam a usar “veículos brancos, não sinalizados, convencionalmente usados pelas Nações Unidas e agências de auxílio” e desenvolviam trabalho de infra-estrutura tradicionalmente feito pelas organizações de desenvolvimento como parte das suas estratégias contra-insurreccionais de ‘corações e mentes’. Tratava-se, diziam, “de desfazer a distinção civil-militar (...) e tal contribuiu para uma diminuição da independência percebida das ONG, para aumentar os riscos dos trabalhadores voluntários e para reduzir as áreas em que as ONG podem operar com segurança”.
Além do óbvio perigo para os trabalhadores do desenvolvimento, esta estratégia está também a minar a autonomia e a credibilidade das agências de desenvolvimento e a eliminar as possibilidades potencialmente progressivas do seu trabalho. O nosso silêncio é cumplicidade.

Mario Novelli

Universidade de Amesterdão (Holanda)


  
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Edição:

Edição N.º 188, série II
Primavera 2010

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