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Biografia

Quando eu era pequena, nunca ouvia falar de infância. Se um mistério havia, era o daqueles meninos que passavam às vezes por nós e que pareciam ter sempre de comer, usavam sapatos e roupas que os cobriam todos e não apareciam cá fora. a não ser quando já nós andávamos, há muitas horas, na lide no campo. Havia coisas de que não se falava. Elas falavam por nós.
Eu não sei se era educação sexual ou não, mas aprendíamos como uma mulher se sujava de sangue todos os meses. Não sei como nos ensinavam, mas sabíamos como, à noite, atrás do cretone que nos separava da cama dos nossos pais, a minha mãe gemia e o meu pai arfava, entre o chorar dos irmãos pequenos; via o catre que abanava e, debaixo dos cobertores esfarrapados que mal cobriam o vento que entrava pelas frestas, sabia que alguma coisa importante estava a acontecer. Também soube cedo como nasciam os meninos: eu tinha que estar lá, quando já tinha sete anos, para levar água quente e toalhas à tia Josefa, que empurrava a barriga da minha mãe para ajudar a nascer mais um irmão. Desgraçado, dizia a minha mãe enquanto o punha no peito, mais uma boca para passar fome e para tirar o sustento aos outros.
De política eu não ouvia falar, excepto uma vez, quando, muito em segredo, contaram do que aconteceu ao Alfredo da tia Zulmira, que trabalhava na Marinha Grande. Um dia foram buscá-lo e desapareceu.
De pedofilia nunca ouvi falar. Ninguém falava. Nem a minha irmã Zilda, de 13 anos, quando chegou a casa, ao entardecer, com o rosto vermelho, os cabelos desgrenhados e o vestido sujo, ainda mais sujo de terra, e se foi enrolar num canto atrás da cama, a chorar, e me falou entre soluços do que o feitor a obrigara a fazer. Nem eu ouvi falar, nem falei nunca, mesmo no dia em que fui à casa grande levar uns mimos do pomar, que mandava o meu pai, e o Senhor Engenheiro me encostou à parede atrás da porta e me quis apalpar e me agarrou e magoou até que pude fugir.
Vivíamos num país mágico, onde, apesar da fome e do frio, da terra gelada que nos cortava os pés descalços, do peso dos canecos de água que acartávamos da fonte à cabeça; apesar das doenças sem medicamentos, dos invernos longos e escuros, com o vento chiando entre os buracos da parede; apesar dos irmãos pequenos, que ajudávamos a nossa mãe a amortalhar; apesar das frieiras que nos cortavam os dedos em gretas purulentas; apesar da escola longe, onde íamos, às vezes, um ano só, enquanto se era demasiado franzina para ir para o campo; apesar de tudo isto, acreditávamos neste mundo mágico, onde este sofrimento era por vontade de Deus, como dizia o Senhor Padre; acreditávamos neste mundo mágico, em que alguns meninos, bem vestidos, agasalhados e sem fome, não precisavam de sofrer para serem bons – magicamente, nasciam assim, bons e puros, sem dores nem mágoas.
Não comíamos à mesa com os adultos, mas à volta da lareira ou da braseira acesa com os restos de vides queimadas da padaria. Das conversas deles eu não entendia, mas sentia o medo e a dor nas suas palavras, quando falavam do que a colheita não dera e de como tinham recebido ainda menos. Corríamos, às vezes, aos regatos, para tentar arranjar alguns agriões para o jantar, ou algumas azedas que, junto com as batatas, sempre aumentavam mais o que ia no prato.
Nesse tempo não fechavam escolas, porque quase não havia escolas abertas. Os que lá andavam mais tempo, como os filhos da professora, do Afonso regedor, do Marcelino da venda, do guarda Almerindo, do feitor ou da D. Gervásia, mulher do caseiro da casa grande, deviam aprender muitas coisas de que nunca tínhamos ouvido falar antes e nunca ouviríamos falar depois. Depois havia a infância para perceber como o trabalho era cada vez mais e cada vez se tinha menos tempo para se perder entre os campos e os animais, entre algumas corridas e saltos de macaca desenhada na terra.
Não aprendi a ler, nem fazia versos. Aos seis anos, ensinaram-me a cuidar dos meus irmãos, a acender a lareira e pôr o caldo ao lume, a acartar os canecos da água, a apanhar as batatas. Aos nove, ensinaram-me a ceifar a erva, a abrir os regadios, a espetar os rebentos de couve, a acartar os molhos de lenha, a sachar.
Aos 13, fui servir, interna, para casa de uns familiares do Senhor Engenheiro, na vila. Ali vi muitas coisas que nem imaginava que existiam. Hoje sei que era a idade a que se chama adolescência. Na altura sabia que tinha crescido e que a senhora da casa se aborrecia porque a farda já estava a ficar curta, que as minhas formas estavam a ficar maiores e que o filho mais velho, a estudar em Coimbra, me perseguia com os olhos e com as mãos, quando ia a casa, aos fins-de-semana.
Aos 17 anos, mandaram-me embora. E fui trabalhar para a fábrica de lanifícios, nos teares. Aos 19 casei-me. O Manel era operário lá na fábrica. No início foi melhor. Fiquei a morar perto da vila, num cortelho pequeno que o Manel, que era jeitoso de mãos, preparou. O telhado é que era pior, pois deixava cair um pedaço de água durante as chuvas.
Depois começaram a nascer os filhos. O primeiro vingou e ao fim de três dias fui trabalhar. O segundo morreu pequenino. Depois vieram mais três e depois dois que também morreram. Eram magrinhos e definhados, sobretudo os últimos. Tinham mais fome do que os primeiros e eu menos força e menos leite para lhes dar, até que o leite secou. O Manel ficou mais velho e doente, já não fazia horas extraordinárias e cada vez tínhamos menos dinheiro. A fome estava muitas vezes em nossa casa. Tive que deixar a fábrica e lavava roupa para as senhoras da vila. No Inverno era difícil. Muitas vezes parti o gelo do tanque do lavadouro para poder lavar. Os ossos doíam-me cada vez mais e custava-me a levantar o peso da roupa.
Os filhos cresceram. Dois rapazes foram para a guerra. Um morreu lá. O outro veio “esquisito”, dizem que foi do que lá viu. O mais novo estava na construção civil, mas caiu do telhado e ficou inválido. O seguro não pagou, disseram que não estava legal. Outro foi para a Venezuela. As raparigas foram para França e outra para Lisboa. O Manel morreu já há muito tempo. Fiquei muitos anos sozinha. Às vezes passava muito mal e quem me valia era uma vizinha. Morri a 2 de Fevereiro de 2010, com 77 anos.

Angelina Carvalho

Colaboradora do Centro de Investigação e Intervenção Educativas (FPCEUP)


  
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Edição:

Edição N.º 188, série II
Primavera 2010

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