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O inverno da nossa desesperança

 “O que sobrevive é a produção consciente e socialmente significativa do indivíduo. Donde decorre que quanto mais universal for esta produção, mais sobrevive. Quanto mais a vida de alguém é expressiva, mais universal será a sua história singular e a sua biografia. E assim transcende-se o inverno da desesperança”.

“Quando uma luz se apaga, fica mais escuro do que se jamais ela tivesse brilhado”. Assim disse John Steinbeck, no livro cuja denominação é tomada de empréstimo para o título deste texto. Trata-se de uma denominação que reflete o tom de desencanto de Steinbeck, aludindo, como se sabe, a primeira frase da peça Ricardo III, de Shakespeare.
Abordando a divisão dos Estados Unidos em dois países, Steinbeck mostra como, enquanto em um procura-se ter presente valores como ética e apreço, no outro prevalece a luta de cada um por si e a busca desregrada pela acumulação material. Desencanto com a sociedade e com a ontologia humana. Com o tempo vivido. Qualquer coisa que, de alguma forma, nos faz lembrar o personagem de Al Pacino em Scent of a woman.
Entre a luz e a escuridão. No papel de um cego, Al Pacino transita entre o mundo pretérito e o presente, vivendo este pela imaginação que, sabemos, produz desejos precisamente por os desejos resultarem da curiosidade e da intrínseca necessidade humana de saciar a subjetividade. Já tendo um mundo vivido, o tempo a viver de Frank Slade – personagem interpretado por Al Pacino - é breve. Brevidade à qual ele procura lhe atribuir sentido a partir da amizade com um jovem que, nesta condição, ainda tem um mundo a viver e, por conseguinte, tem no seu horizonte a busca de significado para a existência. “Num momento, vive-se uma vida”. Com esta frase, Slade atenuou a reação da rapariga que ficou surpreendida com o convite que ele lhe dirigiu para dançar, alegando que o seu noivo estava a chegar. Temporalidade que, mesmo sendo breve, não finda.
De facto, assim é o tempo. O seu passar é passado quando os acontecimentos que abriga dão as cores para a existência. Sem acontecimentos, não pode haver cores. Não pode haver existência. Embora ele possa escapar às nossas mãos, o que importa são as paisagens que, em sua trajetória, passará a compor o seu mosaico.
A contingência do mundo aparece à  realidade humana na medida em que a realidade humana se estabeleceu a si mesma sobre o nada. O inverno da nossa desesperança. Tristeza e melancolia. Não se trata, contudo, de qualquer acidente de percurso, mas de algo inerente à própria ontologia humana. O cerne de quem diz abriga  o que não necessariamente é expressado pelas palavras. Mais ainda: a existência humana, no limite, destina-se à não existência física, ao perecer.
Como bem realçou Hegel, por um lado, a morte é o resultado final do processo de um indivíduo singular, que vive e age numa sociedade universal, e, por outro lado, ela é a negatividade natural do indivíduo que ocorre no tempo, mas que cancela o tempo absoluto do indivíduo que morre. A morte faz o indivíduo sair da universalidade quieta, da negatividade abstracta. A esta universalidade quieta, o morto é remetido como originalidade natural, como ente que, assim sendo, deixa de ser uma diferença, deixa de ser uma alteridade e um outro. Ele volta ao Mesmo, ao Nada. Pelo que, na morte natural, como cancelamento da alteridade existente, não se pode encontrar nenhum consolo e nem reconciliação.
Mas, e que pensamentos e sentimentos experimentamos em relação ao desaparecimento de um ente querido? Aqui parece que é possível estabelecer uma relação com aquilo que o pensamento hegeliano expressou no que concerne à contemplação das ruínas históricas. A morte e as ruínas históricas evocam necessariamente uma reflexão sobre a degradação temporal, sobre o irrecorrível desaparecimento dos indivíduos e das coisas.
Perante o morto não há consolo, pois ele pertence ao domínio do desaparecimento e da finitude. Somente com o nosso retorno ao mundo activo da história dos seres vivos, podemos nos reconciliar com a universalidade da vida. Quer dizer, é na reconciliação com a vida, que nos nega consolo, que temos o lugar onde poderemos encontrar a valorização do desaparecido. Porém, não como desaparecido, mas na expressão de sua universalidade vivida, no produto de sua actividade, que se apresenta como legado e na significação exemplificativa de sua vida.
Em suma, o que sobrevive é a produção consciente e socialmente significativa do indivíduo. Donde decorre que quanto mais universal for esta produção, mais sobrevive. Quanto mais a vida de alguém é expressiva, mais universal será a sua história singular e a sua biografia. E assim transcende-se o inverno da desesperança.

Ivonaldo Leite


  
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Edição:

Edição N.º 186, série II
Outono 2009

Autoria:

Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil
Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil

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