Página  >  Edições  >  N.º 183  >  Educação, conflito e o fim do humanitarismo

Educação, conflito e o fim do humanitarismo

A 13 de Agosto de 2008 a minha amiga Jackie Kirk foi assinada por militantes Taliban no Afeganistão, juntamente com outros três trabalhadores da International Rescue Committee (IRC), uma ONG sedeada nos Estados Unidos que trabalha sobre as questões dos refugiados e grupos de pessoas em migração interna. Foram atacados enquanto viajavam em direcção a Kabul num carro claramente identificado como sendo da IRC. Jackie era uma especialista em género, educação e conflito e trabalhava simultaneamente como académica e como consultora da IRC.
Uma semana depois, em Azizabad, uma aldeia a oeste do Afeganistão foi bombardeada por uma missão conjunta americana e afegã, matando cerca de 90 civis, incluindo 60 crianças. Os aldeãos estavam a participar num funeral quando o bombardeamento se iniciou. Os porta-vozes americanos e Taliban afirmaram em relação a ambos os incidentes que as vítimas eram combatentes. Os Taliban explicaram que Jackie e os seus colegas faziam parte das 'forças ilegais de ocupação', tendo dito os porta-vozes americanos que o bombardeamento de Azizibad foi dirigido contra os 'terroristas Taliban'. Jackie e os seus colegas e os civis inocentes e crianças mortos na semana seguinte mereciam muito melhor destino do que este. As suas mortes trágicas reflectem o problema muito mais profundo da crescente dissolução da fronteira entre civis e soldados, e entre operações militares e operações humanitárias em contextos de guerra e de conflito.
Os sinais de deterioração da possibilidade de neutralidade humanitária e do respeito pelas vidas civis tornou-se crescentemente evidente desde a invasão do Afeganistão e do Iraque. O desejo do governo dos Estados Unidos de querer ser visto como um salvador e não como um invasor, conduziu ao aumento da pressão sobre as ONG americanas no sentido destas se alinharem pelos objectivos da sua política. Em 2003, de acordo com a jornalista e escritora Naomi Klein, o então director da USAID, Andrew Natsios, declarou num encontro de ONG americanas que "estava 'irritado' em relação ao facto de as crianças famélicas e doentes do Iraque e do Afeganistão não perceberem que a sua alimentação e as suas vacinas lhes chegavam por cortesia de George W. Bush", e que de então em diante "as ONG tinham de fazer um melhor trabalho no que diz respeito à ligação entre a assistência humanitária e a política externa norte-americana, tornando claro que elas são um braço do governo dos Estados Unidos". Caso contrário, "Natsios ameaçou que pessoalmente acabaria com os contratos e encontraria outros parceiros". Da mesma forma, em ambos os lados do conflito no Afeganistão e no Iraque tem havido um crescente alheamento em relação às vidas dos povos locais. Em ambos os conflitos, as mortes entre os civis ultrapassam já de longe as baixas militares.
Este tipo de acções está a minar os objectivos das Convenções de Genebra e a ameaçar a neutralidade e a capacidade das organizações humanitárias para operar nestas zonas de guerra. A Cruz Vermelha e o Crescente Vermelho simbolizam a aspiração a este tipo de neutralidade. Contudo, muitas e muitas vezes temos visto que eles não estão ao abrigo de ataques militares ou do desrespeito do seu logótipo. No início do Verão, Ingrid Betancourt, uma política colombiana que tinha sido mantido prisioneira pela guerrilha oposicionista durante vários anos, foi resgatada pelas forças militares colombianas disfarçadas de membros da Cruz Vermelha, usando as suas braçadeiras. O governo começou por negar esse facto, mas os registos vídeo eram provas irrefutáveis. Seja através do financiamento, intenções ou embuste, impendem perigos e ameaças reais sobre a capacidade das organizações humanitárias para continuarem a providenciar auxílio de emergência, cuidados de saúde e educação em algumas das piores situações de crise no mundo.
Jackie, como muitos outros trabalhadores humanitários, era uma pessoa muito corajosa e altruísta, assim como uma brilhante e inovadora educadora. Tinha 39 quando foi assassinada, e tinha devotado toda a sua vida adulta ao trabalho em zonas de guerra extremamente perigosas. Ela e os seus colegas foram assassinados nesse dia não só pelos Taliban, mas também pelo forças militares ocidentais de ocupação que continuam a empurrar as ONG no sentido dos seus objectivos e a usá-las como propaganda no jogo de 'ganhar os corações e as mentes'. Ao fazê-lo, exibem um desdém pelas suas vidas igual ao que mostram em relação ao número crescente de mortes das populações civis locais afegãs e iraquianas. Estas continuam a ser sacrificadas em nome de uma guerra pela 'liberdade' e pela 'libertação' que correu terrivelmente mal.

Mário Novelli


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 183
Ano 17, Novembro 2008

Autoria:

Mário Novelli
Colaborador de «a Página da educação». Universidade de Amesterdão. Holanda
Mário Novelli
Colaborador de «a Página da educação». Universidade de Amesterdão. Holanda

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo