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Uma relação promíscua

Pedagogia e demagogia

O tecido social conhece a dinâmica própria de um organismo vivo, em que as células específicas na sua função aglutinadora de produção de bens consumíveis têm de ser oxigenadas a fim da sua integridade, da sua regeneração, da retribuição de uma força comum em favor do equilíbrio como agentes que sustentam a utilidade da energia cujo dispêndio não será senão trabalho. Para tanto, esse alimento vital propício ao bem-estar do nosso corpo comum vem-nos do conhecimento acumulado, de quanto a partir de uma herança sobre que se semeia se possa colher em excesso, atentas as condições propícias de regulação dos estudos básicos, da experimentação, da investigação, da comprovação pelos resultados.
Quaisquer que sejam os domínios do saber, a função elementar da sabedoria será a de que possa propiciar uma noção mais conforme as leis que regem o mundo físico, biológico, psíquico, enquanto o conhecimento que a pessoa humana detém sobre a sua História, a promoção da retórica e a investigação linguística, a especulação filosófica e as propostas jurídicas, políticas e ecológicas se colocam num plano em que o indivíduo, pela sua maturação, veste o hábito com tanto de pedagogo como de instruendo. A pedagogia será portanto um dos órgãos vivos que insuflam na sociedade, em cada ente da sua estrutura, esse sopro que transforma, que aperfeiçoa e tem a virtude de proporcionar uma perspectiva de conjunto sobre os problemas de primeira grandeza, que afectam a Humanidade e o seu destino perseguido com os mais diversos fundamentos. A fronteira que delimita o ensinamento, com forma de tributo à liberdade de reflexão e de intervenção cívica e clarificação da ignorância, vizinho da persuasão ancorada na legitimidade de uma autoridade política, será uma zona pouco iluminada em que nos movemos a troco ou de um sentido da vida e do que nos possa fazer inocentes, ou da nossa indignação aliada à impotência colectiva face a mecanismos que transcendem as possibilidades de paz e de diálogo universal pelo valor do bem.
A sujeição às regras que emanam de corpos políticos elegíveis, por parte da comunidade escolar, a integração dos modelos de gestão escolar que na essência transportam um espírito de obediência discente para o corpo docente na sua relação com a legislação todo-poderosa, a visão anquilosada sobre a metodologia de avaliação que exige procedimentos arcaicos de resolução de problemas idênticos por parte de uma comunidade heterogénea, nas raízes, nos utensílios familiares objectivos, no imaginário presente, a indução do espírito de competição que se reforça na progressão dos estudos curriculares e acaba por imbuir toda uma cultura empresarial em detrimento da conjugação estratégica nos vários sectores da economia, todas estas constantes de um sistema, importa referir, relevam o êxito circunstancial, com declarada discriminação classista e sem lugar para as utopias. Uma juventude que não perscruta o futuro distante, que não se habilita pela arte de bem-fazer fora do espaço da escola, que pressente o tédio como regalia de uma profissão antecipada, será uma juventude divorciada no seu próprio seio.
Feita uma projecção da realidade em que ao pedagogo é exigível a mera veiculação de uma soma de conhecimento básico, sobre que recai a avaliação, com a noção do instruendo de que tanto representa o reconhecimento do mérito e o ingresso na vida profissional, subtraindo dessa projecção no futuro tanto o insucesso convencional como os desvios vocacionais, o resultado será um organismo em que os sinais vitais, como foram descritos já, sugerem um suporte ventilado de vida a ser insuflado num exercício tenaz contra a adversidade. A demagogia é pródiga em camuflar a doença, sobretudo quando se vale de uma relação promíscua com os comportamentos desviantes do pedagogo, do pedagogo que logrou a intrusão no espaço sagrado da Academia. Se o drama do espaço imberbe da escola subsiste será porque a Academia se foi inquinando, e essa dose dupla de anestésico tem como consequência o divórcio da sociedade civil, um duplo divórcio com o espaço clandestino da escola e o espaço movediço da politica.
O testemunho, de geração em geração, será pois o de remeter para a escola o que é pertença ou missão da escola: alguém será responsável pelo ensino dos jovens, alguém terá essa competência, alguém lhes porá o futuro nas mãos. E os instruendos contam que a família lhes amaciará futuro e o desempenho da sua função social, o modo de vida por conta da família lhes bastará. Sem uma noção responsável da construção de um programa colectivo, da performance como cidadãos em que o provento do saber e do trabalho se redistribuirá tanto mais quanto o conhecimento tenha sido partilhado e as soluções que a vida adulta pede se encontrem no risco, que sendo financeiro tem como consequência uma economia pujante e saudável com todas as suas vantagens, entre as quais a de uma sociedade emocionalmente estável, intelectualmente bem apetrechada e ambientalmente bem inserida. O que se constata, contudo, é a prevalência de atitudes reactivas perante o meio escolar, transferindo de forma evidente o divórcio que suscita o universo da política. De facto, a atitude perante o mundo da governação assenta na mesma filosofia e tem uma mesma prática: alguém terá a solução para as disfunções da sociedade, alguém terá legitimidade para decidir, alguém será culpado pelos desaires das políticas. Alguém poderão ser os instruendos cujas famílias se reconciliem com a escola, ensinando pelo exemplo de coabitação nos espaços de aprendizagem e convívio. O primeiro passo de divórcio do tecido social, de isolamento, é instintivo. Cabe ao pedagogo sair do seu reduto e penetrar na sociedade como metástase da demagogia, inverter a propensão perigosa para que família, escola e política cristalizem num vácuo de inoperância colectiva.
A simples retórica, o exercício discursivo do raciocínio, a manobra das palavras escolhidas serão um caminho ínvio dobrado sobre si mesmo se reportam uma realidade, mais, se a questionam sem oferecer um ponto de fuga para que se justifiquem. A justificação da tese de que, ponderada aquela realidade, didáctica e persuasão encerram em si mesmas vícios e virtudes, sem apontar à promiscuidade a conotação preconceituosa que por regra tem colada, não impede que o olhar sobre o estado de progresso da nossa sociedade, vistas outras na comunidade europeia que nos agrega, nos dê a noção de que não existem condições para bom augúrio. Perpetua-se um país socialmente imaturo, envelhecido e cujas gerações entradas na vida activa durante as últimas décadas, e as que estão em vias disso, se revelam arredadas dos bens culturais, entre eles a própria língua, sem os meios para aceder e competir de forma leal num mercado de trabalho em que são exigidos inventiva, abnegação e espírito de equipa. Enquanto a peneira insistir em camuflar a dorida verdade de quem viaje por bairros, aldeias e palcos de vaidades abertos a um povo sem esperança visível nos rostos, e enquanto a justiça social, o bom-senso e a inteligência forem o reverso de um cartão de visita apenas com paisagem, resta pugnar pelo ensino que contemple a disciplina, esquecida, avaliada pela definição de utopia.

Luís Miguel Brandão Vendeirinho


  
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Edição:

N.º 182
Ano 17, Outubro 2008

Autoria:

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

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