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Professor e Poeta: o rosto do Homem nos seus versos

Palestra no Centro de Estudos Bocageanos
17 de Maio de 2008

Introdução

Rómulo de Carvalho, de seu nome completo, Rómulo Vasco da Gama Carvalho (Vasco por opção própria tomada aos seis anos de idade [1] ), nasceu em Lisboa, no bairro da Graça, no número 7, quarto andar direito, da então Rua do Arco do Limoeiro, hoje Rua Augusto Rosa. Rodeado de memórias históricas, o prédio ainda lá está, felizmente em razoável estado de conservação. Rómulo licenciou-se em Ciências Físico-Químicas na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, em 1931, e foi depois toda a vida até à sua reforma em 1974, professor do liceu.
A sua poesia é revelada publicamente em meados da década de 50 do século passado sob o pseudónimo de António Gedeão, espécie de projecção holográfica do seu criador.
Essa exposição pública de uma fala interior que vinha de muito longe por necessidade de sobrevivência num mundo para ele inóspito, foi, de algum modo, à partida, um acto singular de coragem. Foi um acto de coragem de quem se sentia desajustado de tudo, nascido, como deixou escrito nas suas memórias, sem vocação para ser vivo[2].
Foi um acto de coragem, "uma experiência dolorosa", e foi feliz, pois surgindo como uma experiência ? a de saber se a sua poesia diria alguma coisa a alguém (se poderia ser útil, afinal) ? veio a ser amplamente recompensado pelo apreço, e mesmo encantamento, que os versos de Gedeão suscitaram e suscitam, pelo seu conteúdo, pela forma e pela musicalidade que fazem com que toquem muitas sensibilidades. [3]
Rómulo sempre soube transmitir com simplicidade e singular limpidez, o que tinha para dizer. E sem prejuízo do rigor. As palavras que surgem nos seus poemas são as palavras necessárias, têm uma intenção precisa, um sentido moral e pedagógico. Transportam uma ideia e uma visão da vida e do mundo. São por isso também, de algum modo, um instrumento didáctico de que pode ser tirado e importa tirar partido.
Recordo a frase de Rómulo no livro "As origens de Portugal": "Sabes o que são poetas? ? perguntava à criança com quem dialogava. São os homens que fazem versos. Quando os versos são bonitos e soam bem aos ouvidos é muito agradável lê-los. Muitas pessoas aborrecidas ficam bem dispostas quando lêem versos. Por isso ser grande poeta é tão útil como ser grande médico ou ser grande engenheiro." Poderia ter acrescentado: "ou ser grande professor". Rómulo foi as duas coisas ? professor e poeta ? numa mesma pessoa. Combinação ousada que é exemplo do homem culto de que fala Bento de Jesus Caraça em "A cultura integral do indivíduo".
Segundo alguns, Rómulo de Carvalho foi"(?) um dos últimos representantes de uma linhagem agora quase extinta - a dos grandes professores do Ensino Secundário. Como ele, em anos passados outros vultos eminentes da cultura nacional estiveram ligados ao ensino dos mais jovens e com isso marcaram indelevelmente muitas gerações de alunos." [4]
Escolheu ensinar levado pelo mesmo "estímulo profundo de todos os momentos da (sua) vida". Que estímulo foi esse? Diz-nos nas Memórias que foi "o amor". "Tudo fiz por amor, a única força poderosa capaz de congraçar as pessoas e as coisas numa felicidade possível" [5]. Rómulo que diz ter tido sempre ao longo da vida, muito pouca fé nos homens, que se afirma permanentemente desajustado, e que escreve: "Atravessei a existência sempre com a surpresa nos olhos, a amargura no rosto, a tristeza no íntimo" é o mesmo homem que, incansavelmente, ao longo de toda uma vida se dedica a um trabalho, invulgarmente produtivo, na qualidade e na dimensão da obra que deixa, e marca, na inteligência e no coração, os seus alunos e tantos outros daqueles homens e mulheres em quem enquanto membros confundidos na sociedade que criticamente observa, confessa ter muito pouca fé.[6]
Importa dizer que estes traços da personalidade de Rómulo, professor e poeta, insisto, são traços íntimos de que mesmo os seus mais próximos nem sempre tinham clara consciência. O desgosto de Rómulo pelo mundo de modo algum o leva à inacção mas, antes, pelo contrário, a um empenhamento profundo em ser útil ao próximo. Creio que o trabalho trouxe felicidade a meu Pai. Todo o trabalho. O trabalho do mestre e pedagogo como a persistente inquirição do passado histórico da sua (e nossa) terra, como também, surpreendentemente para alguns, o trabalho manual de marceneiro que o ocupou durante algum tempo na fabricação do mobiliário do seu primeiro escritório. Devo confessar com alguma surpresa que me sinto hoje mais próximo e mais capaz de avaliar em toda a sua extraordinária riqueza a figura e a obra de meu Pai do que quando estava presente entre nós. Penso que ele me compreenderia e compreenderia que nesta ocasião aqui cite um pensamento seu e umas breves linhas dirigidas ao filho Frederico de onze anos que frequentava então o segundo ano no Liceu de Luís de Camões. Aqui vai:

"Frederico
Tenho-me esforçado por te educar dentro dos princípios do trabalho, da honestidade e da rectidão de carácter. Pelo exemplo te educo, pois desde que nasceste, que me vês sentado à secretária, entre livros e papéis (o que é uma das fórmas de trabalhar) ou a transmitir aos outros o que sei ou a apontar-te os defeitos do mundo em que vivemos. Este livro é uma das lições que te quero dar.
Abraça-te o teu pai e amigo
Rómulo
Abril de 1947" [7]

O pensamento é este, a propósito da Arte Sagrada dos egípcios, retirado da mesma obra de 1947:
"Momento a momento se muda o aspecto das coisas. Sem sentirmos, tudo quanto era transforma-se no que é. Em cada instante está presente o passado e o futuro de todas as coisas."[8]

Como pode ser incerta a fronteira entre a ideia em prosa e o poema!
O ser que pensa e o ser que sente são as duas faces inseparáveis e confessas do professor e do poeta. O mundo de dentro, do artista, e o mundo de fora, do cientista, de que fala Rómulo de Carvalho em "Ciência e Arte" [9], são ambos manifestações do mundo natural. Nenhum deles está acima do outro.

O processo criativo

Na parte final das suas Memórias dedicadas "aos seus queridos tetranetos" ? longínquos descendentes (vale a pena referir o facto de que até à sua morte, ninguém conhecia a existência dessas 1100 páginas que nos deixou) ? diz Rómulo: "(?) ainda não vos falei daquela criatura que muito estimei e que muito me ajudou a suportar os dissabores da existência. Quero referir-me àquele meu íntimo amigo, já falecido, de nome António Gedeão".
António Gedeão, o poeta público, apareceu tarde na vida de Rómulo. Este, entretanto, versejava desde menino. Os versos do menino Rómulo, alguns dos quais chegaram a ser publicados, "tiveram grande êxito entre os familiares, o que é muito aceitável como facilmente compreendereis", diz-nos de passagem nas suas Memórias, para acrescentar que: "Entretanto o menino foi crescendo. De menino passou a adolescente e de adolescente a homem. E nunca ninguém soube mais nada a respeito do seu interesse pela poesia". "Ninguém", sublinha. "Ninguém o soube. Só ele é que sabia." (estou a citar as próprias palavras de Rómulo). "Foram passando os anos ?continuo a citar ?. Tudo quanto pensava em verso foi ficando guardado na memória de onde depois se desvanecia."
"Por vezes ? prossegue ? sempre que o que pensava lhe parecia mais merecedor de ser perpetuado, passava-o ao papel. Guardava-o, realmente, mas quando a existência o incomodava demais, ia buscá-lo onde o guardara, fechava os olhos, e, sem ira, sem raiva, docemente, rasgava-o. Assim foi destruindo tudo quanto escreveu "está a falar de si", folha a folha, memória a memória."
" Mas porquê?" Rómulo confessa não saber responder à pergunta. Ou antes, não ter uma resposta segura. Mas torna-se evidente que a poesia acompanhava os seus dias como bálsamo, instrumento íntimo de defesa. Era a expressão de um sofrimento pessoal, o que escrevia "era uma queixa sentida e vivida, uma lamentação (..)" "diz Rómulo" uma lamentação "às vezes cortada pela ironia de uma graça."
"O que escrevia era como o que padecia. Só meu. E de mais ninguém." [10]
Eis o "Poema do homem só": "Quem sente o meu sentimento/sou eu só, e mais ninguém. /Quem sofre o meu sofrimento/sou eu só, e mais ninguém."
"O animal aflito ? conclui ? cortava as ligações com o mundo e consigo próprio. E por isso rasgava tudo e tudo buscava esquecer."[11]
E assim, o tempo foi passando, no silêncio aparente, secretamente fertilizado pelo sofrimento inevitável de viver. "Aos vinte anos, seguiram-se os trinta, aos trinta os quarenta (?)" até que o acaso lhe traz, já perto dos 50, o estímulo que o levaria a Gedeão. [12] Alguns saberão que o estímulo de que falo foi proporcionado por um concurso de poesia que o Ateneu Comercial do Porto promoveu no âmbito das comemorações do centenário da morte de Garrett.

O rosto do Homem nos seus versos[13]

Mas deixemos o que não passou decerto de um pretexto surgido numa altura da vida em que, com o passar dos anos, Rómulo fora construindo um olhar diferente sobre o mundo dos homens. Esse diferente olhar marcado pela vivência concreta do observador inteligente e completamente desapaixonado que ele foi, não surgiu naquele preciso momento nem foi fruto de um concurso de poesia. O poeta estava maduro para se revelar o que, se não tivesse acontecido então, viria a acontecer noutra ocasião não muito distante daquela.. Na altura fê-lo, preservando ainda a sua intimidade por detrás do biombo de um pseudónimo, o que aliás o terá divertido. Mas também isso passaria.
Daí em diante, nascido Gedeão, sobe o pano sobre um poeta excepcional apresentando-se à boca de cena, incógnita ainda mas por pouco tempo, a personagem real. Parece-me certo que a poesia de Gedeão estabelece uma continuidade e ao mesmo tempo uma ruptura com a poesia atormentada que terá sido a do Rómulo do tempo anterior, que porventura infelizmente, desconhecemos.
Talvez se possa dizer que Rómulo sentiu chegado então o momento de falar menos para si mesmo e mais para o mundo exterior, mantendo todavia na sua poesia ? e em vão se esperaria outra coisa ? os traços fundamentais do seu carácter e da sua sensibilidade; a mesma visão da vida e do mundo. Do mundo dos homens e do mundo natural.
Gedeão dizia o que Rómulo tinha a dizer e o que ele tinha a dizer ? ou a cantar ?, eram muitas e diferentes coisas.
" (...) uma queixa sentida e vivida, uma lamentação, às vezes cortada pela ironia de uma graça". Recordam-se?, "Poema do Homem só", já citado, ou "Carne viva". Sim, são a continuidade. E tantos outros poemas de Gedeão.
Mas que dizer da poesia de cores claras, vibrante de vitalidade e movimento ou mansa e enternecida com o espectáculo da natureza e da vida que com ela se confunde? Dessa, estão ausentes o incómodo da existência, a queixa, as lamentações.
(Adeus Lisboa) "Vou-me até à Outra Banda/no barquinho da carreira. "A vida é leve e arrendada como esta réstea de espuma. "Não tenho medo de nada, / receio de coisa nenhuma. "Toda a gente é séria e é boa! / Não existem homens maus!"
(Vento no rosto) "À hora em que as tardes descem, /noite aspergindo nos ares, / as coisas familiares/ noutras formas acontecem. (?) Apetece acreditar, ter esperanças, confiar, / amar a tudo e a todos".

Ou ainda:
(Rosa branca ao peito) "Tu és como a doce brisa, a verde seara e o solo fecundo/ que sabem tudo desde o princípio do mundo. /Tu és como a água clara, a fofa nuvem e o sol agudo. / A tua inocência sabe tudo". "Quando te sentires perdida/fecha os olhos e sorri. /Não tenhas medo da Vida/ que a Vida vive por si."
O amor pela natureza, o amor pelo homem?indivíduo e o distanciamento das multidões, sobre quem lança um olhar crítico e ao mesmo tempo piedosamente compreensivo, são traços da personalidade de Rómulo que emergem com clareza na poesia de Gedeão.
Em vários dos que são, para mim, alguns dos seus mais belos poemas surge com frequência a exaltação do trabalho, na sua plenitude, física e intelectual, e o elogio da capacidade humana de transformação da natureza, sem esquecer a permanente realidade da coexistência de dois mundos, o dos humildes e o dos senhores, o dos necessitados e o dos poderosos. Mundos, de uma ou doutra forma, portadores de mazelas que criticamente assinala, umas vezes com acidez outras vezes com o seu incomparável humor, subtilmente crítico. E estes vários aspectos surgem de mãos dadas nos seus poemas.

"Álvaro Góis, / Rui Mamede, / filhos de António Brandão/ naturais de Cantanhede, /pedreiros de profissão, /de sombrias cataduras/ como bisontes lendários, /modelam ternas figuras/ na brutidão dos calcáreos"
A "brutidão" comum aos homens e às pedras, transforma-se em ternura.
"Álvaro Góis, /Rui Mamede, / ambos vivos ali estão".

"No desmedido caixão", bem diferente da vala onde provavelmente acabariam os ossos dos pedreiros, "No desmedido caixão, / grande senhor ali jaz. / Pupilo de Satanás? / Alma pura de eleição? (?) Para o caso tanto faz."
Também de mãos dadas vão, em Rómulo, a convicção, por um lado, de que no íntimo ser dos humanos, permanecem imutáveis, maugrado o passar dos milénios, certas características animais, reprimidas mas latentes, que a convivência com o outro pode polir mas não apaga, e, por outro lado, a de que o indivíduo, apoiado nos ombros dos que o precederam, é capaz de elevar-se pelo pensamento e pela acção a patamares insuspeitados de perfeição.

Este lado luminoso, revela-se por exemplo em "Ballet", imagem colorida, dinâmica, de uma jovem bailarina em movimento:
"Célere, corres, /mimosa/ e assustada. / Gaivota medrosa na areia dourada. / O sol entontece e morde. / Num repente, libertada, /deslizas, pura escultura, /na macia curvatura/ de um acorde."
E a geração deste ser sem igual, é-nos descrita assim:
"O escopro de milhões de anos arrancou-te à pedra bruta, / modelou-te em pormenor. / O sangue de milhões de homens, em ti, a ferver se escuta. / A harmonia dos teus gestos foi revolta, treva e luta. / O perfume do teu corpo foi temperado em suor. "
A violência, a guerra, o sofrimento e a morte impostos, coexistem com o amor pela natureza, a contemplação do belo, a aventura do conhecimento desinteressado, a paixão pela verdade, a compaixão pelos outros.

"O mundo não é bom nem é mau. É."
Palavras de Rómulo. Que diz também " O homem das cavernas, hoje, usa computadores". O mesmo homem.

Reafirmando por outras palavras a ideia de que "em cada instante está presente o passado e o futuro de todas as coisas", recorda no Poema da eterna presença, "a memória da treva, do medo espavorido/ do homem da caverna"; a "memória da fome,/da fome de todos os bichos de todas as eras"; a "memória do amor", essa "segunda fome de todos os bichos de todas as eras"; e a "memória do infinito,/daquele tempo sem tempo, origem de todos os tempos, em que assisti, disperso, fragmentado, pulverizado, / à formação do Universo." Eis que, diz Rómulo, "tudo se passou defronte de partes de mim./ E aqui estou eu feito carne para o demonstrar, /porque os átomos da minha carne não foram fabricados de propósito para mim. / Já cá estavam./ Estão./ E estarão"

É este sentir de Rómulo, de uma unidade dinâmica do Universo, que Gedeão traduz, unidade que é simultaneamente integração e desintegração, constantemente renovada, que se perpetua: (Pulsação da treva) "Cega e surda, impenetrável, / lateja, na treva urdida, essa coisa inevitável que é a vida". Vida que sobrevive, estranhamente, à própria morte:

(Poema da morte aparente)

"Nos tempos em que acontecia o que está acontecendo agora,
e os homens pasmavam de isso ainda acontecer no tempo deles,
parecia-lhes a vida podre e reles
e suspiravam por viver agora."

"A suspirar e a protestar morreram.
E agora, quando se abrem as covas,
encontram-se às vezes os dentes com que rangeram,
tão brancos como se as dentaduras fossem novas."

Permanece o homem. Permanece o ranger de dentes. Permanece a luta pela vida e por uma vida melhor.
Permanecem os sonhos e os mitos.

(Poema do homem novo)

"Niels Armstrong pôs os pés na Lua / e a Humanidade inteira saudou nele o Homem Novo"  
"Lá vai ele. / Lá vai o Homem Novo."
"Mais um passo. / Mais outro."
"Com redobrado alento avança mais um passo, / e a Humanidade inteira, / com o coração pequeno e ressequido, / viu, com os olhos que a terra há-de comer, /.o Homem Novo espetar, no chão poeirento da Lua, a bandeira da sua Pátria. / exactamente como faria o Homem Velho."

A pouca fé nos homens que Rómulo nos confessa sempre ter tido, exprime-se na poesia de Gedeão por vezes com exemplar clareza. Num dos seus poemas mais inspirados, "Minha aldeia", diz-nos ele:

"Os homens da minha aldeia./divergem por natureza. /O mesmo sonho os separa, a mesma fria certeza / os afasta e desampara, / rumorejante seara / onde se odeia em beleza."
Repare-se no jogo das palavras, e no seu sentido profundo: os homens são a um tempo, diferentes e iguais e desentendem-se mesmo quando têm objectivos comuns.

Em 1947, Rómulo escreve um texto de homenagem ao grande homem de ciência que foi o físico francês Paul Langevin [14], de onde respigo o seguinte pensamento:
"A Humanidade só tem que agradecer aos cientistas que vivem de atalaia contra si mesmos e contra o que afirmam, àqueles espíritos privilegiados para quem a atitude de dúvida persistente é a mais segura das certezas."

Não é esta todavia a atitude da maioria dos mortais. Gedeão refere-se-lhe dizendo:

(Cabeçudo e gigantones)

"Faz-me pena a tua certeza como se tivesses sofrido um acidente,
como se te visse estendido num leito, impossibilitado de te mexeres.
Em tua certeza, cadeira de rodas, fazes-te conduzir piedosamente,
e os caminhos passam por ti sem tu passares por eles, e sem os veres."

Também aqui Rómulo e Gedeão se entendem.
Tais certezas, assim objecto de crítica, arrastam consequências muito mais graves quando se transformam em dogma institucional: já não se trata da certeza de um mas de pensamento único que é sempre resultado de interesses poderosos.

(Poema para Galileu)

"Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando um perigo
para a Humanidade
e para a civilização."

"Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei."

Há na obra de Gedeão um "Poema épico" que me comove particularmente. Não há outro poema épico. Este é o contraponto do poema do Senhor D, Filipe II que foi dono da terra e senhor do mundo. "Um homem tão grande tem tudo o que quer. O que ele não tinha era um fecho éclair."

O "Poema épico" é o poema dos humildes que fazem a história. "O homem da barba por fazer que conta os filhos e as moedas / e balbucia qualquer coisa num tom inexpressivo e roufenho. / Súbito chamejam-lhe os olhos como labaredas: ?Eu já venho!". "O da face doente, o que sofre por tudo e por nada, sem querer, abana a cabeça negativamente: ?Isto não pode ser! Isto não pode ser!."

"Sentados às soleiras das portas,
mordendo a língua na tarefa inglória,
com letras gordas e por linhas tortas
vão redigindo a História".

Rómulo, para quem "todo o tempo é de poesia. / Desde a névoa da manhã / á névoa do outro dia", confessou-se pobre estendendo a mão à caridade, porém, o que lhe era certamente mais doloroso, não para pedir mas para dar. Amor, naturalmente.

(Carne viva)
"A vida é longa e fria. (?) Aconchego-me nos andrajos. Puxo. Repuxo. / Estendo os olhos, implorativos à caridade. / Perto, em confortáveis silogismos de luxo, / capitalistas da Verdade."
Felizmente para nós muitos foram tocados pela sua mão estendida com duradouro proveito, mútuo, sem dúvida, e continuarão no futuro a ser tocados por ela.

[1] in "Memórias" (inéditas), pp.239-240
[2] "A minha natureza física permite-me viver com aprumo e aguentar-me de pé quando os vendavais sopram. Mas, repito, não tenho gosto nisso nem nasci com vocação para ser vivo." p. 247 das "Memórias".
[3] Uma pesquisa rápida no motor de busca do Google, mostra 150 mil referências a Gedeão e várias dezenas de milhar respeitantes a alguns dos seus poemas ("Poema para Galileu", mais de 50 mil; "Lágrima de Preta", cerca de 40 mil)
[4] Henrique Leitão, Fac. Ciências da Universidade de Lisboa, Secção autónoma de História e Filosofia das Ciências, in "Scientia. Recenssões", http://scientia.artenumerica.org/romulo.html (Jan. 2000)
[5] ref. 1, pp.367-368
[6] ibid., p. 278
[7] Linhas escritas na folha de rosto da obra "A Ciência Hermética", publicada em 1947, na Biblioteca Cosmos, vol. 118. "A Ciência Hermética" foi o primeiro trabalho de investigação histórica de Rómulo de Carvalho e é considerada a primeira obra de egiptologia de autor português, publicada em Portugal.
[8] ref. 7, p.15
[9] In Palestra, Revista de Pedagogia e Cultura, nº1, Lisboa, 1958
[10] ref. 1, pp.891-893 (reporta-se a este e aos dois parágrafos anteriores do texto)
[11] ibid. p.893
[12] Entretanto, é conhecido um poema de amor publicado em 1929 no jornal "Porto Académico" e dois "divertimentos" poéticos, também de 1929 os "Poemas Cristalográficos". Entre 1931 e 1939, são conhecidos seis sonetos de amor, que o autor não destruiu.
[13] Todas as passagens citadas de poemas de António Gedeão, foram recolhidas em: António Gedeão, "Obra Poética", Edições João Sá da Costa, Lisboa, 1ª Edição, 2001
[14] Rómulo de Carvalho, "A atitude mental de Langevin perante os problemas científicos", in Mundo Literário, nº 37, 1947

Frederico Carvalho


  
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Edição:

N.º 181
Ano 17, Agosto/Setembro 2008

Autoria:

Frederico Carvalho

Frederico Carvalho

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