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Vidas

No início era uma turma regular, sem grandes problemas a assinalar. Tratava-se do primeiro ano do 1º ciclo e os alunos provinham, na sua maioria, de um pequeno bairro e de algumas ruas circundantes da escola; os habitantes podiam ser da pequena classe média, assalariados, operários fabris, empregados de comércio, funcionários públicos de escalão inferior, pequenos comerciantes de bairro, alguns feirantes. Eram na sua maioria crianças de famílias modestas, empenhadas, mais ou menos ambiciosas, sem grandes acidentes de percurso, com vidas regulares e equilibradas e tudo fazia prever um acompanhamento pacífico até ao fim dos quatro anos de escolaridade.
Mas estamos a chegar ao fim do 4º ano de escolaridade e todo o quadro promissor inicial se tem vindo a alterar, até pelo aumento de pedidos de apoio de Acção Social Escolar.
A Marília começou a chegar à escola sem os trabalhos de casa. Não era normal. Chamei os pais. Contra o costume veio o pai. A mãe fazia agora horas extraordinárias e era difícil pedir para sair mais cedo para vir à escola. O pai estava desempregado por isso vinha ele. Com alguma hesitação, acabou por dizer das dificuldades que se estavam a passar em casa desde há uns meses e de como finalmente nem a luz, cortada por falta de pagamento, tinham agora. Eram ainda os dias pequenos de Inverno e era muito difícil para a Marília fazer trabalhos de casa sem luz.
O Ricardo começou a faltar, desde o início do ano, de manhã às primeiras horas. Quando falei com a irmã mais velha, já casada, ela explicou que a mãe tinha sido transferida para longe de casa, saía às 5h da manhã, e o Ricardo era agora o único que ficava em casa para ajudar a levantar os irmãos mais novos, levar um à ama e o outro ao infantário. Só depois podia vir para a escola.
A Andreia começou a chegar à escola triste, com olheiras, cansada e sem as suas respostas rápidas e ágeis de sempre. Depois de longas conversas acabou por me dizer que tinha mudado de casa ? não queria que os colegas soubessem ? e tudo tinha ficado diferente na sua vida. Há dois anos o pai vira encerrar, sem aviso, a fábrica onde trabalhava. Há um ano fora a vez da mãe. A casa onde viviam e onde a Andreia tinha o seu quarto teve que ser vendida pelo banco. A Andreia perdera primeiro os passeios de fim-de-semana, depois o computador, depois a casa, os vizinhos. Viviam agora numa casa pequena e escura numa ilha. Ela dormia na sala-cozinha na mesma cama da irmã mais nova. A televisão tinha-os acompanhado nessa mudança e ficava na sala onde a Andreia e a irmã dormiam e o pai, que tinha às vezes trabalho, outras não, ficava muitas vezes a ver televisão até tarde.
O Bruno deixou de ser um aluno regular, chega atrasado e cansado, nem sempre traz todos os livros e, sobretudo, chega demasiado molhado nos dias de chuva.
Depois de questionado o Bruno acabou por explicar que, vivendo longe da escola, vinha para esta escola porque era a mais perto de casa da avó com quem passava o dia. Desde o fim do último ano o pai e a mãe não tinham mais trabalho, o dinheiro começara a faltar e nos últimos tempos ele começou a vir para a escola a pé; enquanto era verão não se notava muito mas agora, com o Inverno era mais difícil.
A Juliana começou a faltar intermitentemente. Chamei a mãe que não veio logo. Finalmente quando veio tentou arranjar umas desculpas pouco convincentes. Depois lá explicou que ela estava agora a trabalhar por turnos (tivera que aceitar porque o marido tivera que fechar a pequena loja do bairro e tinha trabalhos irregulares). A sogra estava a viver com eles e tinha ficado acamada em resultado de um AVC. Ainda não tinham tido resposta da Segurança Social e muitas vezes era a Juliana que tinha que ficar com a avó. Por isso faltava.
E outros se seguiram: uns porque tinham ido viver com os tios enquanto os pais se viam obrigados a emigrar; outros porque perdiam a casa e tinham que viver num quarto alugado enquanto o pai ia todos os fins-de-semana trabalhar para as obras para Espanha; alguns que apenas renunciavam a algum conforto (como o telefone ou a Internet).
E em quatro anos tudo se mudou naquele micro-espaço social. Quotidianos, projectos, expectativas de futuro. Lembro-me disto enquanto percorro a rua de acesso à escola, onde se multiplicam os cartazes nas casas anunciando casas em leilão ou à venda.
Estes sim, já estão, obrigatoriamente, a mudar de estilo de vida.

Angelina Carvalho


  
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Edição:

N.º 181
Ano 17, Agosto/Setembro 2008

Autoria:

Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto
Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto

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