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Sair do gueto

As palavras nem sempre são entendidas da mesma forma. Entre elas, algumas têm um peso emocional que as torna ainda mais propícias a variadíssimas interpretações. Gueto, que, em Roma, significava bairro de Judeus, evoluiu para um espaço-prisão. Bairros com habitações baratas, onde vivem pessoas sem grandes posses, bairros na periferia das grandes cidades, bairros onde vivem pessoas que têm uma cor de pele que as identifica como de origem não europeia, ou com perfis desviantes do considerado lusitano, ganham rapidamente o rótulo de gueto, espaço de onde não se sai.
As crianças da turma são todas do mesmo bairro. Até há pouco tempo era identificado como bairro social, estranha afirmação que os pobres vivem em bairros sociais, fazendo presumir que os ricos ocupam bairros associais. Para desfazer o possível equívoco, o bairro dos meus alunos passou a ser um bairro problemático, designação mais confortável para os ricos, que assim se podem assumir como não problemáticos.
Desprevenido, também eu já utilizei a designação de gueto, quando me refiro à zona onde vivem e crescem as crianças que são os meus alunos. Impõe-se uma pequena reflexão. Através dos textos e das histórias que os meus alunos me contam, percebo facilmente que as suas vivências estão concentradas dentro de fronteiras bem definidas. Não são fronteiras geográficas, nem existem muros físicos que separam as crianças do bairro das outras. Não estão proibidas de se deslocarem e a maioria não deve temer a deportação. A fronteira é imaterial. As crianças da minha turma só convivem com as crianças da minha turma e das outras turmas. Convivem com as crianças do prédio e da rua, que são as mesmas crianças que encontram na escola. Convivem com primos, que também estão na mesma escola. São influenciados colectivamente por meios de comunicação que lhes mistura o mundo exterior real com os mundos virtuais dos jogos e desenhos animados.
Os projectos de trabalho individuais ou de pequenos grupos testemunham esta influência. As crianças escolhem como tema de trabalho Just-girls, Winx, Bratz, Powerrangers, Hot-weels, e reproduzem conteúdos de reportagens televisivas. Sabem que existem peixes machos que protegem os ovos, transportando-os dentro da boca. Sabem como o casal de pinguins passa ovos e crias antes de eles congelarem.
Sabem também que convém alertar os pais que é de bom tom oferecer uma prenda às crianças no dia 1 de Junho. E sabem reproduzir as mensagens comerciais daquele dia, como do dia da mãe, do pai, da avó, do avô, do namorado...
Na sala, organizámo-nos para aprofundar estes saberes difusos. Para os confrontar. Para provocar novos saberes. Para abrir fronteiras. Organizámo-nos para que cada um se apodere de meios e técnicas de trabalho que permitam questionar e pesquisar. Organizámo-nos para perceber os circuitos de comunicação e como os utilizar.
Com 6 anos de idade, as crianças, fartas da terra batida sem nada, movimentaram os colegas para conceber o recreio da escola. A turma apresentou a proposta à Câmara. Contabilizaram-se os dias sem resposta, dia após dia. Depois de 299 dias contados, e sabendo das competências atribuídas ao poder local, visitámos a Junta de Freguesia, com a proposta. Agora, contamos os dias que decorreram desde uma promessa não escrita de requalificação.
Com 7 anos de idade, os alunos entrevistaram os comerciantes do bairro. Inquiriram os pais e as mães acerca do local onde vivem. A turma editou um caderno com a análise e as propostas. Divulgou as conclusões, no bairro e ao poder local.
A grande abertura das fronteiras chegou recentemente com o jornal virtual da turma no qual participam outras turmas, por convite nosso. Quase diariamente, crianças de quatro turmas diferentes publicam estudos, trabalhos, textos e recebem comentários de alunos e professores. De um dia para outro, a informação circula muito além do universo conhecido. Interage-se com outros, com vivências diferentes e parecidas.
A autonomia no trabalho e a capacidade técnica adquirida possibilitou às crianças outra projecção da sua intervenção como cidadãos. Entraram em rede com outros cidadãos de outros contextos. Ganharam consciência desta capacidade de intervenção, percebem melhor os muros imaginários que lhes são impostos. Fica-lhes a tarefa de os derrubar.

Pascal Paulus


  
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Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela
Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela

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