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A selva

Uma recente e breve notícia nos jornais e algumas imagens nas televisões, tomadas de uma aeronave, sobre a "descoberta", numa esconsa clareira da selva amazónica, de um pequeno grupo de índios pintados de vermelho e brandindo ameaçadoramente as suas azagaias contra o "monstro" que irrompera por cima do arvoredo cerrado, trouxeram-nos à memória duas figuras gradas da nossa literatura - Ferreira de Castro e padre António Vieira - para quem a "descoberta" de hoje também seria uma surpresa, mas por razões diferentes das dos intrusos aerotransportados.
O primeiro, menino órfão de doze anos saído de Portugal para um Brasil paradisíaco, onde provavelmente esperava encontrar ainda os índios amistosos de que falava a carta de Pêro Vaz de Caminha referida no seu livro de História da quarta classe, logo foi surpreendido, à chegada ao tão celebrado Novo Mundo, pelo ambiente de terror que dominava o seringal onde fora implantada a fazenda exploradora de borracha em que iria trabalhar. Paraíso, afinal, era só o nome da fazenda. O mais era, verdadeiramente, o inferno do trabalho duro dos sangradores de látex, sob a ameaça permanente dos índios que espreitavam, de entre a mata cerrada, à espera da oportunidade para uma surtida contra os usurpadores do seu território natural.
Mas também "descobrira", nos quatro anos em que conseguiu resistir naquele inferno, que era possível negociar a paz com os índios usando o diálogo e não as armas. Isso sucedeu quando à fazenda chegaram os primeiros agentes de um recém-criado Serviço de Protecção aos Índios, inspirado e dirigido por um engenheiro militar, Cândido Rondon, que induzia os madeireiros e plantadores a praticarem, nas suas incursões em território virgem, uma "diplomacia de aproximação", em vez de "acções punitivas" em tudo semelhantes às que, logo no século XVI, os primeiros colonos portugueses e espanhóis desencadearam, dizimando milhões de nativos na América Latina, até à sua quase extinção, que só não foi consumada graças às acções desenvolvidas pelos missionários jesuítas, entre os quais, o padre António Vieira.
Ferreira de Castro ainda contactou com Rondon (regressou a Portugal em 1919), a quem prometeu que iria escrever um livro sobre o tema (o que só aconteceu em 1968, O Instinto Supremo), embora na época da promessa, ainda afectado pelo "terror da selva", não tivesse "resolvido" completamente o dilema ético da sua adolescência: saber onde começava o direito do "selvagem" e terminava o do "civilizado".
Aquele livro, que é uma obra-prima da literatura realista luso-brasileira, aliás traduzida numa infinidade de línguas, no seguimento da outra grande obra que a antecede, A selva (1930), aponta o diálogo como primeiro passo para a concertação das razões divergentes dos povos em confronto de ideias e interesses. Na situação versada, depois de um pacto de tréguas e entendimento de que foram mediadores os caboclos já meio assimilados, - os "Jeca Tatus" que Monteiro Lobato, em 1914, transpôs para a literatura como símbolos do Brasil "incivilizável", o que indignou a intelectualidade progressista empenhada em definir o perfil do "homem brasileiro" fazendo a síntese das três raças: índio, branco e negro ? diz um agente de Rondon:
"Morremos alguns, mas não matámos ninguém. Devemos estar satisfeitos com a nossa consciência, não é nas guerras, é na solidariedade que o homem supera a si próprio. Amanhã já podemos colocar a bandeira num mastro."
Rondon morreu em 1958, com 93 anos de idade, dois anos depois de o Congresso brasileiro o ter feito marechal e ter dado ao território de Guaporé o nome de Rondónia. Não teve tempo para ver cumprida a promessa de Ferreira de Castro nem ler a dedicatória que lhe é feita em O Instinto Supremo: 

À memória de Cândido Rondon, grande figura moral do nosso tempo, e de todos aqueles que realizaram nas profundidades dos sertões brasileiros, à luz das suas ideias, uma epopeia de humanitarismo.
Falecido em 1974, Ferreira de Castro, que em Portugal se realizou e distinguiu como jornalista e autor de uma vasta e importante obra nimbada por um humanismo sem fronteiras, muitas vezes se terá interrogado, sempre que as agências de informação internacionais davam notícias de ataques contra ignotas e pacíficas "ilhas" de índios sobreviventes nos canfundós da floresta brasileira, como era possível, no Brasil que se considerava paradigma da "democracia racial", continuarem a ver-se manifestações de que a "selva" se transferira da natureza simples dos índios para a mente construída dos civilizados insaciáveis.
Mas muito mais constrangeria o seu espírito humanista se, hoje, cerca de quatrocentos anos depois de Vieira e cem depois do seu encontro com o terror selvático dos Parintintins, verificasse que a "selva" mais terrífica começa longe da fronteira do Amazonas. Aqui, num anunciado Novo Mundo, onde o missionário, porventura logo na aldeia índia em que se refugiara, menino de 16 anos, para escapar à invasão dos holandeses sedentos de terra e riqueza, sonhara um Quinto Império, frátria de todos os homens, continuava a haver lugares onde não fora implantado o mastro da bandeira do respeito pela diversidade e não era reconhecida a divisa de Rondon: Morrer se necessário for; matar, nunca. Ao contrário, a massa prevalecente de que seria feito o "homem novo" prenunciado pelos Evangelistas e por outros, humanistas crentes e não crentes, milénios depois, conservava ainda um estigma, dentro, perto e longe do Amazonas: Homo homini lupus.

Leonel Cosme


  
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Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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