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Um longo caminho a percorrer

ENSINO PROFISSIONAL

Em 2006 a oferta de cursos profissionais foi alargado aos estabelecimentos da rede pública, acabando com o regime de quase exclusividade que as escolas profissionais mantinham desde a criação do ensino profissional em 1989. No entanto, de acordo com os profissionais que estão no terreno e que a PÁGINA teve a oportunidade de ouvir, as escolas do ensino público têm ainda algum caminho a percorrer se quiserem ganhar este desafio. As escolas profissionais, por seu lado, vêm-se não só confrontadas com a nova concorrência mas atravessam um período de grave crise financeira provocada pelo atraso no pagamento dos subsídios a que têm direito.

Dois anos após lançamento dos cursos profissionais nas escolas públicas

As escolas profissionais estão a atravessar uma grave crise financeira que está a pôr em causa o futuro de muitas destas instituições. A causa para esta situação reside no atraso do pagamento dos subsídios atribuídos às escolas no âmbito do Plano Operacional de Potencial Humano, que há seis meses deixaram de ser pagos. Para fazer face ao atraso na transferência das verbas, muitas escolas viram-se forçadas a recorrer a empréstimos à banca. A medida, porém, não resolve o problema de fundo: a desadequação do actual modelo de financiamento.
Cristina Bastos, directora pedagógica do Instituto Profissional de Tecnologias Aplicadas (IPTA) garante que as escolas profissionais "não recebem qualquer financiamento desde o final do ano passado", levando estas instituições a uma situação de crescente "asfixia financeira". "As escolas têm de pagar aos formadores, aos fornecedores e atribuir os subsídios de transporte e de alimentação aos alunos. Um número significativo de escolas teve de recorrer a empréstimos para fazer face a estas despesas". Apesar de serem escolas privadas, as EP, recorda Cristina Bastos, "são tuteladas pelo Estado e prestam um serviço público".
O director da Escola Superior de Tecnologias e Artes de Lisboa (ESTEL), Archer Cabral, confirma esta situação e diz que as EP "ainda só foram ressarcidas através de um adiantamento de 15 por cento, valor que corresponde, quanto muito, ao primeiro mês de funcionamento. É muito difícil viver nesta situação". Mais ainda, explica, quando as escolas têm de ter todas as suas despesas pagas para poderem ser reembolsadas. "O momento que se vive é muito complicado e pode inclusivamente pôr em causa o futuro de algumas escolas", diz Cabral. Mas se algumas destas instituições possuem uma retaguarda financeira que lhes permite ir vivendo sem os subsídios do Estado - nomeadamente as que têm acordos com as autarquias e entidades públicas ? grande parte não dispõe de semelhante mecanismo. "Para a maioria é difícil, até porque se trata de verbas muito significativas".
O processo de financiamento das escolas profissionais decorreu sem problemas de maior até à conclusão do III Quadro Comunitário de Apoio, em 2006. No ano seguinte, em 2007, entrava em aplicação o novo Quadro de Referência Estratégico Nacional e o Programa Operacional de Potencial Humano, que substituiu o PRODEP. Inexplicavelmente ? pelo menos para quem trabalha directamente com este novo mecanismo ?, a mudança trouxe alterações de natureza burocrática que atrasaram a atribuição dos subsídios.
Foi também em 2006 que se operou uma pequena revolução neste subsector, com as escolas profissionais a passarem a ter a "concorrência" directa das escolas públicas. Nesse ano, o Ministério da Educação alargou a oferta de cursos profissionais às escolas do ensino público e avançou com a criação de 450 cursos profissionais em cerca de 180 escolas secundárias de todo o país. Com esta medida, o governo quis duplicar a oferta de cursos profissionais ? abrangendo sobretudo áreas relacionadas com serviços e tecnologias ? até aqui praticamente exclusiva das escolas profissionais privadas, que disponibilizavam 89 por cento da oferta destes cursos.
Uma forma de fazer face àquilo que diversos relatórios internacionais confirmam desde há muito: o défice de qualificação dos portugueses, traduzido, entre outros índices, no insuficiente número de jovens que conclui o ensino secundário ? no qual se incluem as vias profissionais. De facto, em Portugal apenas cerca de 40 por cento dos jovens entra no mercado de trabalho com o ensino secundário concluído, quando na União Europeia essa média é da ordem dos 80 por cento. Por outro lado, apenas 30 por cento dos jovens que frequentavam o ensino secundário em 2005 estavam inscritos nas vias profissionais, um número muito reduzido em comparação com os 70 por cento na UE.
O Governo estabeleceu o objectivo de inverter esta situação reduzindo para 25 por cento o número de jovens que entra no mercado de trabalho sem o ensino secundário e aumentando para 50 por cento o número de alunos nas vias profissionais ate 2010. Ao mesmo tempo, criaram-se Cursos de Educação Formação (CEF), profissionalizantes, de nível II, para jovens com mais de 16 anos.

Ensino profissional nas escolas públicas ainda com "algum caminho a percorrer"

Mas estarão as escolas públicas preparadas para responder ao desafio que constitui a criação de cursos profissionais, nomeadamente no que se refere ao modelo de gestão e de estrutura organizacional? Na opinião daqueles que estão directamente envolvidos neste processo, não. Pelo menos para já.
Silva Pereira, professor na Escola Secundária Fontes Pereira de Melo, no Porto e coordenador de diversos cursos profissionais na área das tecnologias e ciências deste estabelecimento de ensino, considera "drasticamente positivo" o alargamento desta oferta à rede do ensino público. Acha mesmo que esta medida já deveria ter sido tomada há mais tempo.
"Porque razão se deveria restringir o ensino profissional unicamente a instituições privadas com fins lucrativos? Não fazia sentido nenhum, até porque uma boa parte dos docentes das escolas profissionais são-no também no ensino público, têm competências mais do que suficientes para desempenhar a sua função e dispõem de equipamentos que, em muitos casos, são melhores relativamente ao ensino particular". Apesar desta convicção, Silva Pereira considera que, para terem sucesso, "as escolas públicas terão de se adaptar à lógica de funcionamento das escolas particulares", sobretudo o que se refere à flexibilização da estrutura curricular e da distribuição da carga horária.
"A flexibilidade dos planos de formação é uma das mais-valias do modelo das escolas profissionais", explica Cristina Bastos. "É possível, por exemplo, ir buscar determinados módulos opcionais de um programa e juntá-los aos módulos obrigatórios, de acordo com cada curso, ou reforçar o número de módulos de uma disciplina transferindo-os de outra, e só depois se avançar para os restantes. Além disso, apesar de termos um horário pré-definido ele pode ser flexibilizado semana a semana, dependendo das necessidades da turma e dos alunos", adianta Bastos, considerando que as escolas públicas terão "alguma dificuldade" em se adaptar a este modelo.
Algumas escolas, porém, poderão partir com alguma vantagem. É o caso das antigas escolas industriais e das escolas secundárias que possuíam oferta de cursos tecnológicos. Sérgio Resende, professor e coordenador do curso profissional de técnico de instalações eléctricas na Escola Secundária de Gondomar, considera que é necessário "aproveitar toda a logística e 'know-how' existente nessas escolas públicas, principalmente as secundárias que leccionavam cursos de vertente tecnológica e que estão relativamente bem equipadas".
Quando o curso se iniciou na sua escola, conta, existiu um "período de adaptação dos alunos e encarregados de educação a esta filosofia de ensino diferente. Há uma ideia errada de que não é necessário grande esforço e de que praticamente não existe componente teórica nas disciplinas técnicas, mas não é assim".
Sérgio Resende explica ainda que, apesar de alguns professores se terem rapidamente adaptado a esta nova forma de trabalhar (na escola já tinham existido outras alternativas formativas), "para quem sempre viveu o ensino regular foi com alguma dificuldade que trabalhou com este modelo de ensino". Facto que resulta, na sua opinião, da "quase imposição destes cursos às escolas de uma forma apressada e sem preparar terreno". A "entreajuda dos professores tem sido a mais-valia para que o processo funcione mesmo sem ter havido uma preparação sustentada", diz ainda. Dois anos volvidos, e apesar de ainda haver "algum caminho a percorrer, considera, apesar de tudo, que "o balanço é positivo".
Baseado na sua experiência enquanto professor do ensino público, onde coordena diversos cursos profissionais na Escola Básica 2,3 do Cerco, no Porto - função que acumula com o seu cargo de direcção na ESTEL - Archer Cabral também considera positivo o alargamento da oferta ao ensino público, mas não da forma como ele foi implementado, "porque exigia uma preparação que não foi contemplada aquando do seu lançamento". "É verdade que as coisas não avançam se não se for para a frente com elas, mas talvez tenha sido um salto demasiado ambicioso", refere Cabral,
"Nas escolas profissionais o percurso dos alunos assenta em objectivos e a estrutura do curso em módulos, o que requer um constante acompanhamento quer a nível de avaliação, de controlo da assiduidade, da recuperação das cargas horárias, quer da organização e gestão dos módulos. E a maioria dos professores do ensino público desconhece o funcionamento dos cursos profissionais. Eu próprio constatei isso quando fizemos o lançamento dos três cursos actualmente existentes."
Silva Pereira concorda que existe "alguma dificuldade por parte dos professores em se adaptarem a este tipo de funcionamento", mas responsabiliza a falta de maleabilidade do sistema. "No ensino regular é o calendário escolar que determina o início e o fim das actividades curriculares. E isso coloca algumas dificuldades, nomeadamente a nível dos horários dos professores, que "deveriam ser mais flexíveis" para corresponder ao tipo de exigência inerente a este tipo de formação. "A um professor que tem de dar 300 horas de formação é indiferente leccionar um determinado número de horas numa semana e mais ou menos na seguinte. É essa desadequação que, na minha opinião, leva a que os professores raciocinem muito ainda em termos liceais".
Por outro lado, acrescenta Silva Pereira, na medida em que os cursos profissionais são, tal como o nome indica, profissionalizantes, "é preciso que os novos professores das áreas técnicas dos cursos profissionais estejam actualizados e familiarizados com as evoluções técnica e a sua aplicabilidade". E isso não passa apenas por acções de formação, garante. "Ter outro tipo de perspectivas em termos de ensino e de soluções e saídas só é possível com a inserção de novos professores no sistema. Salvo algumas excepções, não há novas pessoas e qualificadas. Podem ter a experiência pedagógica e didáctica, mas não estão actualizados", afirma Pereira.
"Neste domínio as escolas profissionais estão em vantagem, já que podem contratar directamente os formadores nas empresas, sobretudo os das áreas técnicas", refere Cristina Bastos. Por seu lado, Silva Pereira prefere chamar a atenção para a "inadaptação" do modelo de contratualização, que impede os professores, entre outros aspectos, de ministrar aos alunos de um determinado curso apenas um certo número de horas. No entanto, acrescenta, "além de nunca ter havido qualquer tipo de negociação entre a tutela e as organizações sindicais neste sentido, não penso que os sindicatos estejam preparados para entender este tipo de situação".

Equilíbrio da rede é fundamental

Outra das questões fundamentais neste subsector prende-se com a necessidade de proporcionar uma rede equilibrada, de forma a não sobrepor a oferta formativa e gerar desperdício de recursos. Este aspecto é tanto mais importante quando nos últimos dois anos as escolas públicas passaram a concorrer directamente com as escolas profissionais. Esta responsabilidade, que cabia directamente às direcções regionais de educação, passou para o domínio das câmaras municipais no âmbito da transferência de competências educativas para as autarquias.
"Eu sei que existem intenções, e tem havido algumas iniciativas nesse sentido por parte das direcções regionais e ultimamente das autarquias, para organizar a rede. Porque, de facto, não faz nenhum sentido duplicar a oferta em escolas que ficam próximas geograficamente. As escolas privadas e públicas não precisam necessariamente de competir entre si, mas para isso é necessário haver uma articulação na rede". Esta é, na opinião de Cristina Bastos, uma das principais dificuldades com que se confronta este subsector. "Mas se há câmaras que funcionam bem neste aspecto, outras nem tanto?", diz.
Segundo Archer Cabral, "o importante é que as pessoas estejam bem preparadas de forma a poderem adaptar-se a uma determinada área funcional. De resto, penso que o próprio mercado de trabalho acaba por regular o sistema, porque se uma escola não tem saída para os seus alunos isso reflectir-se-á na sua taxa de empregabilidade e, consequentemente, a escola ver-se-á compelida a ter outro tipo de oferta", conclui.
Opinião diferente tem Silva Pereira. "O equilíbrio da oferta e da procura está deixada ao livre arbítrio dos grupos de interesse, de algum tráfico de influências e de interesses políticos. Até porque se sabe que alguns alunos são encaminhados para determinadas escolas com base nas suas competências e qualificações, ou seja, são seleccionados, quando a Constituição diz que isso é ilegal. Assim é mais fácil ficar bem colocado nos rankings". Razões suficientes para afirmar que "o sistema deveria ser mais transparente".
Outra das questões que as escolas públicas terão de acautelar no sentido de garantirem o sucesso dos seus planos de formação prende-se com a forma como conseguem ligar-se ao tecido empresarial local. Neste domínio, Archer Cabral considera que as escolas públicas ainda "têm algum caminho a percorrer já que não há muita experiência nessa área". Em última análise, diz, "tudo dependerá da iniciativa de cada escola".
"O facto de algumas escolas públicas estarem muito bem equipadas tecnicamente não é suficiente. Tem de haver uma maior proximidade com as empresas. E essa é uma mais valia que duas décadas de experiência trouxeram às escolas profissionais. Não vejo o conselho executivo ou o coordenador de um curso de uma escola pública a ir a uma empresa e procurar captar o seu interesse", diz Cristina Bastos. Na opinião desta responsável, para conseguirem concretizar esta dimensão as escolas públicas precisam de alterar os seus procedimentos. "Não é por não saberem fazer, é por não poderem fazê-lo com a actual estrutura. É preciso transformar algumas práticas, quer de gestão quer de prática pedagógica. E julgo que o novo regime de autonomia das escolas poderá permitir isso".
Sérgio Resende é da opinião de que "a dinâmica que se tem vindo a implementar nas escolas públicas permite encontrar parcerias do mesmo modo ou até mais facilmente que as escolas privadas". Ressalvando o facto de este processo ser novo para algumas escolas e que, como qualquer outro, "demora algum tempo até estar bem afinado", explica que já no primeiro ano de implementação dos cursos na secundária de Gondomar conseguiram-se parcerias para colocar todos os alunos em estágio com "relativa facilidade" em empresas da área de influência da escola. "O passo seguinte, e que está a ser trabalhado, é o de trazer as empresas à escola, promovendo uma maior aproximação da relação empresa-escola para que as parcerias se mantenham e resultem em mais valia para ambas as partes". É que, segundo Resende, e principalmente neste tipo de cursos, "a escola também tem algo a aprender com a empresa".

Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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