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Os professores e a indisciplina

Não há nada a fazer? (II)

Não há resposta face aos fenómenos de indisciplina nas escolas se não formos capazes de enfrentar algumas das crenças e dos equívocos em que, tantas vezes, nos atolamos quando abordamos essa problemática. Como defendemos no último artigo, a indisciplina escolar nem pode ser entendida como um fenómeno que nos é absolutamente exterior e estranho, nem pode ser entendida como um fenómeno tendencialmente homogéneo.
No último artigo recorremos à tipologia que J. Amado desenhou para dar conta da pluralidade das situações de indisciplina, defendendo que perante a perturbação do funcionamento da sala de aula, uma das três modalidades de comportamentos disruptivos referidos por esse autor, existe a possibilidade dos professores accionarem algumas respostas capazes de nos permitir enfrentar a situação. Neste sentido, parece-
-nos possível afirmar que é perante os acontecimentos relacionados com aquele tipo de perturbação do quotidiano das salas de aula que os docentes, individualmente, têm mais possibilidades de assumir uma postura proactiva perante a ocorrência de tais acontecimentos.
O que se constata, no entanto, é que a indisciplina como fenómeno não se circunscreve, apenas, ao tipo de manifestações que Amado refere como o primeiro nível de indisciplina nas nossas escolas. Segundo este autor há, ainda, a existência de outros dois níveis a considerar: o dos conflitos interpares e o do confronto entre professores e alunos que põem em causa quer a autoridade, quer a dignidade dos primeiros. Trata-se de situações que resultam de causas diferentes e que obrigam, igualmente, a respostas de natureza distinta e diversa. É que, ao contrário das situações relacionadas com o nível de indisciplina referido anteriormente, as respostas face às mesmas depende mais do envolvimento institucional das escolas e da construção de sinergias entre estas e outras instâncias e parceiros educativos e sociais do que da acção individual dos docentes.
No caso dos conflitos que ocorrem entre os alunos, por exemplo, há que distinguir se estamos perante factos pontuais, susceptíveis de serem resolvidos pelos actores em presença, ou se, pelo contrário, estamos perante acontecimentos que se caracterizam pela sua agressividade recorrente e pela impunidade dos infractores. Neste caso, a instituição escolar não se pode demitir das suas responsabilidades educativas, devendo tentar encontrar soluções quer a partir dos seus próprios recursos, quer a partir da mobilização de parcerias que possam potenciar a sua capacidade de resposta. Neste caso, como noutros, não nos podemos dar ao luxo de enviar mensagens erradas, ambíguas ou equívocas.
No caso do terceiro tipo de conflito, o que opõe os professores aos alunos de forma irredutível e agressiva, a situação é grave porque é, como a anterior, uma situação violenta. Também não admite vacilações, ainda que seja necessário reconhecer que estamos perante uma situação que nem acontece por acaso, nem é uma situação tão frequente como as parangonas nos jornais e nos noticiários dão a entender. Segundo o estudo de J. Amado, trata-se de ocorrências que acontecem com adolescentes entre os 13 e os 15 anos, com histórias pessoais problemáticas e em situação de insucesso escolar crónico. São alunos que, desde muito cedo, estabeleceram relações tensas e mal sucedidas com a Escola, gerando-se, assim, um círculo de mal entendidos, aparentemente inevitáveis, que foi responsável por uma ruptura que conduziu a primeira a desistir precocemente desses alunos e estes a ir desistindo daquela à medida que, no seu seio, se foram debatendo com o insucesso e a incompreensão por parte daqueles que os rodeavam. Insucesso e incompreensão que, quantas vezes, os conduziu à humilhação e à aceitação da sua incapacidade intelectual e pessoal como causa do seu inêxito quer como alunos, quer, sobretudo, como pessoas. Neste caso, a vida nas escolas não era diferente da vida em casa e na rua, onde a comunicação se fazia segundo a lei de um mais forte para quem a fraqueza constitui, afinal, um facto tão inadmissível quanto intolerável. O que é que se pode esperar de quem aprendeu a viver, como um prisioneiro, num mundo assim? O que é que se pode esperar de alguém que um dia descobre a sua força e a força que essa força lhe concede? O que é que se pode esperar de alguém que sente o primeiro momento de muitos outros momentos de sucesso na vida quando descobre a força de tal força na sua vida?
Neste caso, o que se espera é que as escolas tentem cumprir, o melhor possível, o seu papel, antes de, mais tarde, terem que enveredar por respostas de carácter pedagógico, tão desesperadas quanto carentes de convicção, que visariam remediar algo para a qual também foram contribuindo. Se esta pode ser considerada, aconteça o que acontecer, a opção educativa, há que reconhecer a sedução exercida pela opção repressiva que o apelo à judicialização dos comportamentos violentos dos jovens tão bem retrata. Mesmo que não a consideremos uma opção à mão de semear, não é nossa pretensão recusar liminarmente esta última via, mas tão somente mostrar como a mesma terá que ser objecto de interpelação. O que se espera não é eliminar, através da pretensa acção civilizadora da Escola, as consequências da miséria do mundo. Se isso não é possível, é possível, no entanto, que a escola tome "todas as medidas necessárias para dar aos mais desfavorecidos boas condições de formação e contrariar todos os mecanismos que conduzem a colocá-los nas piores" (Bourdieu, 1987: 107).
O que é que tudo o que afirmamos, neste artigo, significa?
Ainda que possamos admitir a possibilidade de outras leituras, distintas daquelas que norteiam os nossos propósitos, importa afirmar que, mais do que pretender responsabilizar excessivamente a Escola pela ocorrência dos dois tipos de indisciplina que foram objecto deste texto, desejámos contribuir, acima de tudo, para a delimitação das suas responsabilidades como instituição educativa. Neste caso, resta-nos, então, reflectir, num próximo trabalho, sobre a problemática da autoridade nas sociedades contemporâneas, abordando-a como problemática que não podemos ignorar quando nos debruçamos quer sobre as situações da ausência de disciplina, quer sobre a ocorrência de comportamentos indisciplinados no âmbito dos espaços escolares.

Bibliografia

  • Bourdieu, Pierre (1987). Propostas para o ensino do futuro. Cadernos de Ciências Sociais, 12 (1), pp. 81 ? 110.

Ariana Cosme
Rui Trindade


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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