Página  >  Edições  >  N.º 180  >  Cinema e pedagogia do olhar

Cinema e pedagogia do olhar

Não é difícil observar que muitas das experiências de inserção das novas tecnologias na escola, especialmente em se tratando de televisão e cinema, acabam tendo como objetivo condenar ou reprovar este ou aquele programa ou filme, nomeando-os de "violentos", "machistas", etc.. Acho importante salientar que seria ingênuo imaginarmos que, ao mostrar os "problemas" destas produções, faríamos com que as crianças os apreciassem menos. O que pretendo defender de forma breve, aqui, é que talvez seja mais produtivo investirmos tempo e esforço mostrando e apresentando produções culturais de uma complexidade mais apurada do que criticar e atacar Dark Angel, Dragon Ball Z, Powers Rangers ou Avatar. Ou seja, aposto num trabalho (ou num encontro) entre cinema e escola, entre arte e escola, com a convicção de que ofereceremos mais para uma criança mostrando-lhe um plano de um filme de Abbas Kiarostami, uma bela seqüência de Manuel de Oliveira ou um fragmento de Fritz Lang - todos cineastas renomados por, respectivamente, Onde é a Casa do Amigo?, Amor de Perdição, Metropolis - do que se ficarmos desmontando, durante horas, qualquer um dos produtos da 'sopa televisual'.
Um trabalho deste tipo na escola seria importante, pelo menos, por dois motivos. Primeiro, porque penso que o acesso à arte é um direito de todas as crianças e jovens, e porque o espaço escolar, para um grande contingente deles, provavelmente seja o único no qual esse encontro seria possível. Falo, portanto, de uma atuação, acima de tudo, política, qual seja, a de pelo menos pensarmos na possibilidade de que crianças e jovens possam ser mobilizados pela arte. Ao promover o encontro entre crianças e cinema, a escola faria mais do que "ensinar" arte, já que "arte não se ensina, ela se encontra, se experimenta, se transmite por outras vias que não a do discurso do saber único e, por vezes, mesmo sem nenhum discurso" (Bergala, 2002, p. 30).
Ao dizer que não caberia à escola "ensinar" cinema, refiro-me ao segundo motivo que torna a inserção do cinema na escola importante: o encontro com emoções e sentimentos que só nos são oferecidos pelo cinema (e por nenhum outro meio). Assim, a idéia não é a de apresentarmos filmes (ou fragmentos de filmes) exclusivamente com o objetivo de desenvolver o "espírito crítico" das crianças. Talvez o que importe seja favorecer o contato das crianças com aquelas obras que não circulam nas grandes salas e nos circuitos comerciais. O desafio seria o de iniciação, o de exposição, num duplo entendimento: exposição de filmes específicos às crianças e exposição das crianças à arte, em seu sentido mais genuíno. Afinal, é justamente essa a questão principal da relação entre cinema e escola: a de promover, de facilitar o encontro com a alteridade; uma tarefa que diz respeito, sobretudo, a uma pedagogia do olhar; uma pedagogia que busca aceitar olhar as imagens em sua parcela enigmática, e que não se restringe a introduzir palavras e sentidos inarredáveis sobre elas.
O encontro de que falo aqui privilegiaria romper com um certo "didatismo" quando o assunto é arte ou mesmo imagem: ver aqui, naquela tela, naquela instalação, o que o artista quis "mesmo" dizer; entender o que aquela imagem "representa" ou quer "representar". Uma possibilidade instigante poderia ser a de enfatizar perspectivas de trabalho que fossem além daquelas ligadas às "significações corretas", aos "ensinamentos", às "mensagens". Tratar-se-ia simplesmente de apresentar filmes, considerando uma impossibilidade básica: "por mais que se tente dizer o que se vê, o que se vê jamais reside no que se diz" (Foucault, 1998, p. 65). Ou seja, tratar-se-ia de considerar as infinitas possibilidades de olhar para além da conexão entre imagens e palavras. Quando falamos de imagens (e de arte) não há "ensinamentos" previsíveis, no sentido de que não há interferências possíveis naquilo que diz respeito à fruição, ao deleite, à sensibilidade: pode-se até obrigar alguém a aprender algo, mas não se pode ensinar alguém a se emocionar (Bergala, 2002).

Referências Bibliográficas

  • BERGALA, A. (2002). L'hypothèse cinéma. Paris: Petite Bibliothèque des Cahiers du cinéma. 
  • FOUCAULT, M. (1998). As palavras e as coisas. Lisboa: Edições 70.

Fabiana de Amorim Marcello


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

Fabiana de Amorim Marcello
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), membro do Grupo de Pesquisa Cultura e Educação (GPCE/ULbra) e do Núcleo de Pesquisa em Mídia, Educação
Fabiana de Amorim Marcello
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), membro do Grupo de Pesquisa Cultura e Educação (GPCE/ULbra) e do Núcleo de Pesquisa em Mídia, Educação

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo