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Pulverização de modelos no ensino básico

FÓRUM SOBRE EDUCAÇÃO NA GUINÉ-BISSAU (III)

As intervenções no Fórum sobre Educação realizado em Bissau em Fevereiro constituíram também um retrato das diferentes experiências no campo do ensino básico elementar em território guineense, ao mesmo tempo que expressavam críticas severas à demissão do Estado nesse domínio.

Foi claro, durante o encontro, a colagem geral a um discurso de promoção do sistema de parcerias. Esta opção surge tanto na sequência da assunção de certas premissas ideológicas naturalizadas pelo neo-liberalismo, como no contexto de um Estado enfraquecido ou quase inexistente no campo da educação. Prevaleceu, sem suma, um consenso quanto ao reconhecimento da incapacidade (e desmotivação ideológica) de intervenção do Estado guineense nas questões educativas.
O foco esteve essencialmente no Ensino Básico Elementar (EBE), e o terreno propício à acção das ONG?s e às parcerias com o Estado apresenta, pelo menos, três grandes "carências" ou fragilidades: (1) as escolas públicas não cobrem a totalidade do território guineense; (2) a oferta de educação pública não responde às necessidades do país; (3) a procura de educação ultrapassa a capacidade de resposta das escolas públicas.
A oferta educativa do EBE na Guiné-Bissau encontra-se fragmentada, assim, num amplo mosaico de experiências marcadas por parcerias em que o Estado raramente tem honrado os seus compromissos, como sublinham críticas de professores e outros agentes.

Iniciativas comunitárias, (des)responsabilizações públicas

A fragilidade do Estado guineense é, pois, uma das premissas da diversidade de modelos de escolas de EBE. Para além das escolas públicas, que funcionam essencialmente nos meios urbanos, o acesso à educação básica conta com as seguintes estruturas: (1) escolas comunitárias; (2) escolas de auto-gestão; (3) escolas públicas com apoio das associações de emigrantes manjacos; (4) escolas populares, de iniciativa de professores; (5) escolas privadas, como as das missões católicas ou colégios. Há também escolas muçulmanas ? as madrassas ?, que lutam ainda por reconhecimento estatal. Verifica-se uma certa regularidade da distribuição geográfica destas experiências: as primeiras são mais frequentes na região de Bafatá, as segundas em Oio, Cacheu e no sul, as terceiras em Cacheu, e as quartas nos bairros periféricos da capital.
As escolas comunitárias e as manjacas são objecto preferencial do trabalho da Fundação Evangelização e Culturas (FEC), um dos promotores do Fórum. No caso das escolas comunitárias, a iniciativa parte das tabankas, cujos líderes decidem a sua localização. Nesta fase, o apoio da PLAN é fundamental, através da participação com materiais didácticos e de construção. As escolas seguem o programa curricular do Ministério da Educação (ME), que assegura, teoricamente, a formação dos professores e o acompanhamento do trabalho lectivo por inspectores, e fica co-responsável pelo pagamento dos salários aos professores.
As escolas manjacas são escolas públicas de iniciativa comunitária. O seu funcionamento depende do apoio material das associações de emigrantes manjacos, sobretudo em França e em Portugal. A contratação dos professores é uma responsabilidade estatal. As associações de emigrantes garantem um subsídio aos docentes e pagam o transporte (ou fornecem bicicletas). Tanto no caso das escolas comunitárias como no das escolas manjacas, a FEC assegura formação em serviço de docentes e directores escolares, assim como o acompanhamento do trabalho lectivo, um trabalho equiparável ao que deveria ser efectivado pelo ME (por realizar, na prática, por incapacidade ou desresponsabilização estatais).

"A dificuldade maior é trabalhar sozinho"

Os oradores foram pródigos nas críticas ao Estado por incumprimento dos acordos de parceria com as ONGs, salientando os atrasos nos pagamentos dos salários. Os docentes chegam a estar mais de um ano sem remuneração e as greves afectam seriamente o ano lectivo, que acaba por se reduzir a alguns meses.
Face à demissão por parte do Estado das suas responsabilidades (que o discurso dos professores e de outros actores insiste em classificar como elemento central na política educativa do EBE), as comunidades procuram soluções de recurso para mitigar as incertezas que marcam o trabalho e a vida dos professores. Por exemplo, não tendo as comunidades capacidade para substituírem o Estado na remuneração dos docentes, o pagamento dos salários é consumado por vezes em géneros. Tal solução está dependente, todavia, do sucesso das colheitas e das receitas obtidas.
Algumas experiências particulares, de iniciativa de professores, têm contribuído para manter as escolas abertas e a actividade lectiva. É o caso de cultivos comunitários (mancarra, milho e caju) expressamente organizados para patrocinar a escola e o salário dos docentes. A FAO colabora com sementes e alfaias e o Programa Alimentar Mundial apoia as cantinas escolares). As receitas são também aplicadas compra de material (cadernos, lápis, etc.)
Em toda essa cadeia, o Estado continua a ser o principal faltoso, como assinalou Braima Djau, professor de Cambeidare, uma tabanka de Bafatá. "A dificuldade maior é trabalhar sozinho. O Governo tem que ajudar, a comunidade só não chega". A responsabilidade estatal é observada como um seguro contra as imponderabilidades, no quadro de uma expressiva valorização do processo educativo: "As crianças têm que aprender. O dinheiro pode acabar, mas o conhecimento fica".

Nota: este artigo contou com a colaboração de técnicos de formação de professores e directores escolares envolvidos em intervenções da FEC nas áreas de Kanchungo e Bafatá.

Humberto Lopes


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 179
Ano 17, Junho 2008

Autoria:

Humberto Lopes
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Humberto Lopes
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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