Os noticiários vão dando eco do agravamento de preço dos produtos alimentares, um pouco por todo um mundo, com uma frequência cada vez maior. Os comentários são variados e as explicações imprecisas. A escassez de milho no México, do trigo no Egipto, de arroz nas Filipinas e no Haiti, é acompanhada de agitação social e crises políticas. Noutros países como o Paquistão, para minorar o encarecimento dos bens de subsistência, o governo recorre ao seu racionamento. Na própria Europa, a alimentação absorve 15% dos rendimentos familiares, 20% em Portugal. Mas em países pobres de África e outros continentes, a larga maioria da população consome os seus parcos rendimentos, provenientes de actividades modestas mal remuneradas, quase totalmente na alimentação. A sua vulnerabilidade ao agravamento de preços é enorme e as potenciais consequências são gravíssimas; sem exclusão de qualquer continente, pois que até nos países mais ricos existem populações destituídas e marginalizadas. Este processo em curso, de agravamento dos preços da alimentação, para o qual os próprios FMI e BM também já chamaram a atenção, afigura-se muito grave para a sobrevivência de largas populações e pelas potenciais implicações para a estabilidade de numerosos países e para as já muito problemáticas relações internacionais. Na base deste processo está a escassez de factores de produção insubstituíveis. Primeiro, a escassez de energia, sobretudo de hidrocarbonetos, de que se obtêm o gasóleo para a maquinaria agrícola e os meios de transporte, bem como muitos fertilizantes, evidenciada pelo agravamento imparável do preço do petróleo. Segundo, a escassez de solos férteis e trabalhados, porque alguns esgotados por culturas extensivas e intensivas em proveito do complexo agro-industrial, outros improdutivos, por forçada deslocação das populações rurais ou para subúrbios de grandes metrópoles, à procura de condições de vida um pouco melhor, ou para campos de refugiados, em casos de conflito político-militar. Terceiro, a indisponibilidade de água, por exaustão de aquíferos sobre-explorados ou por desvios ou contaminações de águas superficiais, ou ainda, por variações climatológicas. Todos estes factores de escassez acumulam-se e explicam a quebra de produtividade e de produção a nível global. Acresce que o nível de globalização já atingido colocou na mão de alguns poucos "traders", ou seja, oligopólios que dominam o comércio mundial da produção agrícola, a capacidade de ainda por cima poderem controlar os fluxos dos produtos, armazená-los ou escoá-los, manipular os respectivos preços "spot" e "futuros". A complicar, mas ao mesmo tempo elucidar os fundamentos e a interligação dos fenómenos em jogo, temos a recente promoção e corrida aos agro-combustíveis (ou bio-combustíveis). A pretexto do encarecimento (resultante da rarefacção da oferta) dos combustíveis líquidos (quase inteiramente derivados do petróleo), o presente desvio ou conversão de produtos agrícolas (tradicionalmente dirigidos para o consumo alimentar, designadamente cereais, oleaginosas, cana açucareira, tubérculos e frutos) para agro-combustíveis, é um evidente motivo das falhas de aprovisionamento e do encarecimento de produtos alimentares básicos, e dos seus derivados. Nenhum país escapará aos impactos desta corrida insensata e perigosa, se ela prosseguir, seja países importadores, seja os próprios países exportadores, posto o elevado grau de especialização e posta a forte interdependência no comércio mundial. O que está em causa é pois um complexo de questões convergentes. Por um lado, os limites naturais dos níveis de produção realizável; por outro, as condições sociais e económicas que satisfaçam as aspirações a condição de vida e paz das populações, assim libertando a sua força de trabalho a favor da produção de bens básicos; e ainda, a distribuição desses bens alimentares essenciais no mercado mundial, livre das presentes pressões oligárquicas e especulativas. Sinceramente devemos duvidar das dificuldades de consciencializar e resolver estas três questões fundamentais, aqui resumidamente enunciadas. Mas não podemos desistir de prosseguir esse caminho até o alcançar. Entretanto, o tempo passa e as razões subjacentes à presente crise subsistem e esta tende a degradar-se ainda mais. A acessibilidade e o preço da energia agrava-se (a capacidade de produção de petróleo atingiu o seu máximo já); os solos produtivos delapidam-se e as condições sócio-económicas necessárias para recuperar os solos abandonados não são reconhecidas e encorajadas (reforma agrária é ainda um tabu); o capital financeiro que comanda também os oligopólios da produção, do comércio e da industrialização das matérias-primas agro-florestais não abrirá mão voluntariamente dos seus privilégios fabulosos.
Rui Namorado Rosa
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