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A fantasia e as fronteiras do verosímil

Imaginário, aventura e aventureiros

A figura do avô, paradigma de autoridade e sapiência, perdura como actor da tradição oral fossilizada. Rebuscada dos serões de histórias e memórias em que a credibilidade das palavras se reflectia no brilho atento dos olhares maravilhados, nos pedidos por mais fantasia, tomou lugar cativo em muitos dos próprios textos que a imaginação inspirou.
A inventiva recorreu-se de um narrador autorizado por natureza, legitimando assim a possibilidade de se construírem universos que competiam com as simples vivências e transportando-nos do material para o ideal num passe de mágica. Mitos, lendas, contos fantásticos, frutos da inocência, da fragilidade e do poder em construir cenários e enredos mirabolantes nos espíritos sem mácula das crianças, ingredientes doseados com as artes da inspiração e o manejo da linguagem, perduram como prova de que o mundo de hoje já se transformou entretanto. Talvez os criadores das ilusões bebidas pelos avós não tivessem a noção exacta do caminho que se começava a desenhar, desenfreado como os seus mais belos sonhos. E agora sabemos que tudo é possível, nesta fronteira em que se recria o passado a belo prazer do virtual, como temos a noção inquietante de que há instrumentos para apagar, na sua qualidade temporária, a fuga aprazível pelos meandros das alucinações. Esta aventura entre o real e o ideal suspende sobre nós uma sentença a que não deve presidir a indiferença: a de nos afundarmos sem retrocesso num desses universos, sem a capacidade de os compatibilizarmos.
Há contudo uma geração que conviveu com um género literário, vasto nas suas expressões, que constituiu utensílio útil na sua fruição, nas imagens que reflectiu da vida, nas suas repercussões: os livros de aventuras. Aventuras comuns de jovens, livres num lapso de atenção na inexorabilidade da evolução social, aventuras de aventureiros adultos em demanda dos limites inóspitos, dos limites como pessoas, aventuras exóticas em territórios exóticos, aventuras de prenúncio das transcendências da técnica, aventuras de heróis a experimentar a sua ousadia, a sede de descobertas, a conquista de horizontes, de profundezas, de florestas insondadas, aventuras por outras culturas, por legados secretos, por doutrinas proibidas, por hábitos excêntricos, pela mística, aventuras por transcendência, por rotas lendárias, por liberdade, por amor ? por que não dizê-lo? , por mudança e paz, por justiça e fraternidade, aventura como modo de estar na vida. Conquistando a partir da fantasia dos textos a prova de que, pela sua inspiração, pode ser protagonista dos feitos remotos que propiciam o conhecimento do mundo. Que pode ter uma casa na árvore, voar, escrever as próprias memórias sem receio em testar a verosimilhança dos mais ousados relatos.
Os velhos perigos a coberto das noites, os fenómenos de que a superstição se alimenta, as crenças em nebulosas figuras povoando a ignorância, o incompreensível perante a fraqueza humana, são a cerca invisível e implacável construída com as lianas dos receios. As histórias de fadas, os tesouros dos arco-íris, os príncipes encantados, as florestas de chocolate, os reinos das nuvens e os coelhos amigos põem cobro às amarras das trevas e vão-se doseando com uma subtil moralidade de que em criança há a permissão para o bom sonho. Monstros e paraísos são a realidade que apenas se metamorfoseia para que se lhes compreendam os significados com o olhar adulto. Eis que se avizinham a necessidade e a utilidade de chamar os super-homens a competir em territórios do imaginário, relegando anões, duendes, pulgas malabaristas, espíritos benfazejos e remates felizes de pasmar e apaziguar a curiosidade para o papel de prendas, de surpresas coloridas por invólucros fantasistas. Os poderes sobrenaturais encarnados em figuras de carne e osso prometem e asseguram a diligência dos crescidos, sem que se perca o entusiasmo por finais empolgantes, mas retiram do futuro e na sua essência a possibilidade da aventura, de uma heroicidade verosímil. Uma heroicidade que completa a condição humana sem recurso à violência, com os dividendos da estatura física e mental ao serviço das provas de nobreza de carácter, de gosto pelo saber, pela noção inteira das diferenças e das afinidades dos povos e das heranças místicas, de culto da aventura que sendo pessoal é universal e contagiante, que é expoente de liderança qual seja a forma como se manifeste.

O risco e a concepção do mundo

A percepção da realidade, sensitiva no plano mais elementar em que ela se nos oferece e no que dela exigimos, confere pouco espaço ao devaneio como afronta à escravatura do dogma. O dogma quando interrogado, encostado à parede nos becos em que por definição não tem saídas se a coragem não bastar, tem os seus cães de fila cujo ladrar prenuncia o risco. Aquela ousadia, mais nobre do que a das aventuras inconsequentes, efémeras e pontuais, a que tem as chaves de soluções para o que se afigura como inevitabilidade, como prisão da nossa condição de construtores da realidade e como paisagem que não cabe na tela dos mapas sem o sabor dos condimentos, esse despeito que move o saber e o deleite por novidades não desconhece o seu freio, a sua sombra, a chibata que lhe amansa a urgência, mas que não chega senão para o alimentar: o risco. Aos aventureiros o risco não morde porque aventura é também saber contorná-lo, ludibriá-lo, convencê-lo e ao dogma, enquanto adormecidos no alto da sua omnipotência, de que são deles toda a razão e a tutela das dúvidas. A aventura, não sendo um fim em si, é uma aposta, mas não uma aposta contra o risco. É uma decisão em, para além de todos os receios e das interrogações, permitir outras perspectivas da realidade sem ousar transformá-la. O invisível e desconhecido pertencem à inventiva com uma probabilidade relativa de se incluírem nos domínios do existente e do inexistente. Todo o domínio da existência é infinito e plausível, o sonho existe, o milagre existe, o fatalismo existe com tanta consistência como o universo que uma imaginação infantil resolva virar do avesso e tornar intocável na sua consistência material. Antes que tenhamos visto as estrelas ao entardecer já elas eram jóias à nossa espera, rindo com o seu brilho da nossa ignorância e sorrindo no seu silêncio perante a nossa inocência. E nós ousámos ver mais longe no cosmos, correndo o risco de compreender que há um dogma que aplaca a sede em que nos endeusamos. Mais um, construído com as roupagens da aventura, que nos dará não já uma concepção do mundo, mas uma desmontagem do mundo adiada há uma eternidade.
O risco mais presente na nossa odisseia pessoal e colectiva é o da desistência por convicção. Há caminho, haverá ainda que não se faça, e nós olhamo-lo da fronteira do inútil. Há a quem amar, haverá sempre enquanto o amor for palpável nos poros da alma, e nós cremos que esse amor se construiu sem ser imenso. Há palavras, como o silêncio, a ausência ou a negação, e entregamo-nos nos seus braços sem conforto ou individualidade para experimentar. Abdicar é menos do que o dogma merece, esse dogma que bebe do masoquismo para que as forças mirrem quando o vigor da razão e a matreirice da experiência ainda acompanham os aventureiros. No limbo, alcançam os que caem nos braços disponíveis e dão novidades, consumado o êxito no regresso do caminho, aos que amam, aos que saúdam todos os sacrifícios sem silêncios, participando de festejo em todas as histórias como actores em cena no momento em que elas começam sob a forma do património que ninguém roubou entretanto.
Se a aventura se permitisse objectivos que insistimos em distinguir, mas que confluíssem no impossível da sua fruição simultânea, o dogma seria ferido sem piedade. O prazer, a harmonia, a alegria, a compreensão do mecanismo da matéria, a comunicação, a construção da realidade conforme o imaginário, a eternização dos laços afectivos humanos sobre o domínio do tempo, a experimentação da carne e do espírito, da extensão do universo ao alcance de uma pirueta da vontade, a ficção vivida sem restrição, o mais que pudesse assustar os pequenos demónios que nos regulam a vida, far-nos-ia inventar a mais antiga das invenções: o tédio. E partiríamos numa outra aventura em demanda das dores e das angústias para lhes provar o sabor e reconhecê-lo, das grades para nos recolhermos de novo, das guerras para voltar a delirar na diversão dos seus gritos e dos seus enredos. Insatisfeitos e insaciáveis, eis como somos, e tudo temos para folgar com a vizinha, para levar o cão à rua, comprar o jornal e ir verter líquidos por trás de uma árvore, antes de começar a dar opiniões sobre a vida ao longo do dia e a comentar o estado do tempo.

A mudança em causa

Colocar a questão acerca de ser a Natureza que muda os homens ou de serem os homens que a transformam, para além de ser um problema levantado com insistência sobretudo nos nossos dias, pode parecer falacioso. Apesar disso, tem a virtude de nos fazer reflectir e de nos colocar no nosso devido lugar. Uma noção da proporção das forças que estão em jogo, e do que mudou de forma radical na vida dos homens ao longo de milénios se comparado com o que estamos habilitados a alterar nos limites que nos são impostos, conduz à opinião de que, se os homens transgridem a beliscar a Natureza, ela não pode senão esmagar-nos. Com o seu poder que aguçou o engenho humano, com os seus segredos que lhe permitiram ser palco de aventura que se perpetuou e não se esgota, com as suas dádivas, pródiga em bens que nos fazem sobreviver trocadas as voltas do nosso apetite, com a sua faculdade de estar no centro da nossa arte que não prescinde do seu leque infindável de inspiração e do consolo para os momentos em que a invocamos e a evocamos. Desde que a Humanidade saiu do seu canto remoto e escuro, inventando e construindo uma imagem do que foi, sôfrega do saber que protege e move toda a dominação, têm-se encapelado as mesmas águas, vomitado pelos interstícios as mesmas lavas, elevado ao céu os mesmos gelos como esculturas que se esboroam e reconstroem, aclarado a mesma luz nas manhãs feitas ao compasso de outros tantos crepúsculos, regenerado as mesmas florestas e batidos pelo vento os mesmos desertos. Construímos diques, lançámos as pontes, abrimos as ruas para elevarmos as torres, e quando nos refugiamos para além da fronteira das nossas obras somos confrontados com a nossa pequenez. E alguns entendem que não podem abandonar a sua vocação de aventureiros, provando assim uma fatia da vida nem que seja por um instante e pela ilusão de reinar sem súbditos.

Luís Miguel Brandão Vendeirinho


  
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Edição:

N.º 178
Ano 17, Maio 2008

Autoria:

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

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