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Portugal babélico

Em Outubro de 2003, nesta mesma página, a propósito do tempo depressivo que se começava a viver em Portugal, avocámos um breve excerto do último poema da Mensagem de Fernando Pessoa  "Nevoeiro" que termina, como se sabe, com uma exortação patriótica: É a Hora!
Para nós, ontem como agora, aquele poema já era mais do que uma exortação: era um "aviso" contra o "statu quo" de um "Portugal a entristecer", (onde) "Ninguém sabe que coisa quer. /Ninguém conhece que alma tem, /Nem o que é mal nem o que é bem. /(...) Tudo é incerto e derradeiro. /Tudo é disperso, nada é inteiro, /Ó Portugal, hoje és nevoeiro... /É a Hora!"
Poderemos ainda aduzir que o "aviso" contra o "nevoeiro" de um país "sem brilho e sem arder, como o que o fogo-fátuo encerra" é recorrente, não sendo preciso ir mais longe do que a Geração de 70 (do século XIX, claro), com as suas "pronúncias" no Cenáculo e nas Conferências do Casino de Lisboa. É um facto que um "nevoeiro" continua a envolver os actuais cenáculos, centros de estudo, clubes de reflexão, plataformas cívicas, estados gerais e outros quejandos, onde, mais alta do que a voz dos historiadores e dos cientistas, a que se eleva é a dos "self-made-men" e dos "managers", que, abjurando as intervenções providenciais de qualquer salvador Encoberto (representado por ideia ou entidade), postulam que às energias do Privado (expressas no capital e no mercado) se deve confiar a salvação e o destino das pátrias.
Vozes uníssonas que não explicam, porém, as dissonâncias da realidade social, em que a disparidade dos meios e condições de vida verificada entre grupos e indivíduos, sendo cada vez maior e mais gritante, acaba por confundir clamores com algazarra (esta tomada pela acepção que lhe vem do étimo al-gazara: vozearia dos Mouros ao começar os combates), numa geral tensão ou mal-estar cujos contornos e consequências muitos observadores consideram indefiníveis e perigosos, havendo mesmo quem tema que a "vozearia" ultrapasse as fronteiras da crítica e da contestação, lembrado porventura da reflexão que já fazia F. Oliveira Martins há mais de cem anos: "É lícito esperar que o acicate da miséria consiga o que não conseguiu a razão? A fome é má conselheira. Quem dela esperar mais do que exaltações mórbidas, engana-se talvez."
Culpando ora o Estado, ora os políticos, ora os empresários, pelas crises que grassam em Portugal (nomeadamente as do Governo, da Justiça, da Educação e da Economia, omitindo-se geralmente a da Criminalidade, grande e pequena, que perdeu o respeito pela Lei e pela Grei), esquece-se que todos os acusados são originariamente produtos da mesma massa sociológica (que hoje ninguém dirá feita de "brandos costumes", com "um só rosto e uma só fé"), depois formatados segundo os interesses individuais, de grupo ou de classe, e imprimindo o seu cunho de tal modo nos valores éticos julgados essenciais, que noções virtuosas, como Democracia, Cidadania ou Bem Comum, não passam de abstracções.
Em vão se repetem as vozes da Razão e do Bom Senso. Entre as actuais, ultimamente revertendo aos conspícuos sermões do Padre António Vieira, retivemos a de José Gil, centrada na observação de que (hoje) "Os portugueses têm medo de existir", e a de Miguel Real, na (lenta) "Morte de Portugal"  que outro analista social, Guilherme d'Oliveira Martins, entende como uma metáfora atractiva, "mas o melhor desafio é desmenti-la". Felizmente, sem a ameaça de um qualquer Ultimatum à vista, não é ponderável reeditar a Finis Patriae de Guerra Junqueiro...
Reconheça-se que este Portugal babélico de agora ainda é produto das "heranças culturais" (outros arriscarão dizer "código genético"), que circulam nas nossas veias como sangue transfundido, e vêm desde um intemerato Viriato, de alguns réis proficientes e de aventureiros bem sucedidos, até ao nevoeiro de Alcácer Kibir e a espera do Desejado - que para a maioria do povo foi, no século passado, Salazar... Num país em que o Poeta-Mensageiro, "escrevendo o livro à beira-mágoa", se interrogava "Quando é o Rei? Quando é a Hora?" e o semanário Notícias Ilustrado, em 1932, "via" nos "Painéis de S. Vicente" que o rosto de Nuno Gonçalves era "igual" ao de Salazar, a resposta estava dada no "sinal" da predestinação, "por Deus e pela História", do Professor de Coimbra para remover as brumas da Primeira República e salvar Portugal.
Depois, a história do nosso tempo escreveu o capítulo seguinte, em que se desvelaram as esperanças imponderadas em milagres de Ourique e salvadores Encobertos, e seu viu, no dizer do Oliveira Martins contemporâneo, repercutindo o seu antepassado, que "o sebastianismo, temos de o entender, é a prova póstuma da nossa identidade, e temos de o exorcizar."
Para que, contra as "exaltações mórbidas", se responda, de uma vez por todas, aos questionamentos recorrentes dos Mostrengos e Velhos do Restelo e se desminta, pela reconversão dos medos em desafios e dos mitos em autocríticas, a "boutade" que os Romanos faziam sobre os Lusitanos: não se governam nem se deixam governar...

Leonel Cosme


  
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Edição:

N.º 178
Ano 17, Maio 2008

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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