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A escola de Fonte Boa

"Imagine que, por algum mensageiro de Deus, acaba de receber um postal de Fonte Boa, lugar de que nunca ouviu falar, mas cujo nome de imediato lhe desperta a simpatia do coração e lhe evoca no espírito aquela outra Fonte, onde corre a água viva e transborda a bondade..."
"... Siga o curso de água até jusante e os seus olhos deleitar-se-ão com o banho nu das crianças que brincam na piscina; siga a água até montante e, escondida entre as ervas, encontrará a fonte."
Assim começa e termina o último capítulo das "Escritas de Fonte Boa" (Profedições, 2007), um conjunto de cartas que Joana Abranches Portela escreveu de Moçambique, falando da sua actividade de professora, durante dois anos, na escola da Missão de Fonte Boa, como voluntária dos Leigos para o Desenvolvimento.
O local fica algures na Angónia, confinando com a Zâmbia, o Malawi e a Tanzânia, no seio de um povo activo que vive da pastorícia e da agricultura, vê no culto dos antepassados o selo da ética social e acredita num "espírito" supremo que pode ter vários nomes, conforme seja chamado por animistas, cristãos ou muçulmanos ? tudo num "nível" de consistência que Wallon significaria como um estado entre o mito e a ciência.
A Missão é administrada por uma pequena comunidade de jesuítas, coadjuvada por religiosas, que asseguram o funcionamento regular daquela estância missionária: religião, escola, centro de saúde, maternidade, oficinas, exploração agrícola, moagem. Angónia é um "mundo" falado em língua chichewa e traduzido em português quando nativos e estrangeiros precisam de comunicar entre si; a Escola, uma porta para a comunicação com os outros "mundos" que existem para lá da Angónia, incluindo o "mundo" chamado Moçambique.
Joana, acompanhada pelo marido, que é engenheiro mas também ensina português, dá-nos nas suas "escritas" uma ideia contagiante do encantamento em que se deixou envolver na África onde só tinha vivido um ano e meio depois de lá nascer. Não é o encantamento do viajante entediado do mundo da plena saciedade, que, tendo atravessado todas as fronteiras e conhecido todos os rios e embocaduras, inesperadamente é deslumbrado pela descoberta de uma nascente de água lustral "escondida entre as ervas"....
Para Joana, o deslumbre vem, por exemplo, de ver a alegria com que os meninos selvagens acorrem à escola e a sua atracção pela biblioteca. "Tem uma enorme afluência e dá gosto ver que é tão útil aos alunos(...) que não têm livro a nenhuma disciplina.(...) Um deles é o Luciano, do 9º ano, que gosta muito de filosofia (todas as tardes lá vai à biblioteca requisitar um manual de filosofia) e por autodidactismo andou a estudar (com apontamentos e tudo) os pré-socráticos. Agora anda em Platão.(...) De vez em quando, vem pedir-me para lhe explicar alguns conceitos. Um dia, estava eu na papelaria, apareceu para eu lhe explicar o que era um arquétipo. (...) Há alguns alunos que gostam de nos bater à porta para conversar... Mas tivemos que estabelecer um horário, senão não temos sossego."
Platão, num recôndito da selva africana... Em cotejo com a escola de Boa Fonte, a professora, formada em Línguas e Literaturas Clássicas e Portuguesa pela Universidade de Coimbra, há-de ter pensando em muitas daquelas escolas do mundo "civilizado" onde impera a indiferença, de que fala outro professor, Gilles Lipovetsky, em "A Era do Vazio" ( Relógio d'Água, 1988): "Em lado algum o fenómeno é tão visível como no ensino, onde, em poucos anos, com a velocidade de um relâmpago, o prestígio e a autoridade dos docentes desapareceram quase por completo. Hoje, o discurso do Mestre encontra-se banalizado, dessacralizado, em pé de igualdade com o dos media, e o ensino é uma máquina neutralizada pela apatia escolar, feita de atenção dispersa e de cepticismo desenvolto ante o saber. É esta desafectação do saber que é significativa, mais do que o tédio, de resto variável, dos alunos dos liceus (...) onde os jovens vegetam sem grande motivação ou interesse." ? salvo os que são despertados pelo manuseio dos computadores, através dos quais cada um, fazedor de si próprio, artificia uma "Second Life" em que o limite está na imaginação. Versada em Humanidades, que lhe terão despertado o "sentido de missão" (por fé ou filantropia pouco importa) nos confins de Moçambique, onde a medida do Homem ainda é dada pela Natureza visível e palpável, a professora poderia ter dilatado (se é que o não fez) a curiosidade do jovem Luciano por Platão e os "arquétipos", contando que o filósofo saiu de Atenas para viajar, durante cerca de doze anos, por regiões ignotas da Ásia e da África, em busca de "fontes" do saber. E que ele defendia que o homem começava por ser uma "tabula rasa" em que o conhecimento, recebido da própria experiência e do que lhe chegava de ver e ouvir em derredor, ia inscrevendo valores que determinavam formas de personalidade e modelos sociais.
Por último, numa carta que não foi escrita, imagine-se que a professora Joana terá pensando que, indo a Fonte Boa, como Platão foi até às margens do Ganges e do Nilo (onde foi certamente surpreendido por encontrar civilizações superiores, como eram as da Índia e do Egipto, e, diz um estudioso, " se impregnou da sabedoria de todas as fontes, prostrando-se ante todos os santuários e provando de todas as crenças"), porventura inscreveu no seu "arquétipo" de professora uma nova valência: "sentir" que a Escola há-de funcionar como uma nascente de água viva e límpida, que fascina, e nunca como um estuário a transbordar de águas paradas e turvas, que enfastia.
Para que não lembre a massificação da Caserna de Lipovetsky nem a obnubilação da Caverna de Platão. Para que seja uma "fonte boa".

Leonel Cosme


  
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Edição:

N.º 177
Ano 17, Abril 2008

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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