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"Não se pode exigir ao sistema educativo níveis de qualidade que muitos outros domínios da sociedade portuguesa não alcançaram"

José Madureira Pinto defende que os professores não são o elo mais fraco do sistema educativo

José Madureira Pinto é, desde 1994, Professor Catedrático do Grupo de Ciências Sociais da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, onde se licenciou em 1968. É membro do Instituto de Sociologia e tem colaborado regularmente com o Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da mesma universidade. Doutorou-se em Sociologia pelo ISCTE em 1982. Foi Presidente da Associação Portuguesa de Sociologia entre 1990 e 1994.
Leccionou, ao nível de licenciatura, várias disciplinas das áreas da iniciação às ciências sociais, metodologia das ciências sociais, teorias sociológicas, sociologia rural e urbana e sociologia da estratificação e das classes sociais, e ao nível de pós-graduação disciplinas das áreas da metodologia das ciências sociais, da sociologia da cultura, da sociologia da educação e da sociologia económica.
Presentemente, coordena, no âmbito do Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, uma pesquisa financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia sobre "Transformações sociais numa colectividade rural do Noroeste português", envolvendo uma revisitação a uma freguesia estudada há três décadas.
Dirige a revista Cadernos de Ciências Sociais nas Edições Afrontamento - tendo co-organizado, com Loic Wacquant e Virgílio Borges Pereira, o último número publicado: "Génese e legado da obra de Pierre Bourdieu. Espaço, cultura, dominação", 2007, bem como, com António Joaquim Esteves, o próximo número, no prelo, sobre "Precariedade de emprego, modos de vida incertos, impasses de desenvolvimento".
É autor de diversos livros, artigos e capítulos de livros sobre teoria e metodologia das ciências sociais, sociologia rural, sociologia da educação e das práticas culturais, sociologia do trabalho e das classes sociais, tendo publicado, em 2007, o livro Indagação científica, aprendizagens escolares, reflexividade social, nas Edições Afrontamento.
Foi, entre 1996 e 2006, consultor do Presidente Jorge Sampaio para a área da "Economia, sociedade e desenvolvimento" (no âmbito da Assessoria para os Assuntos Económicos e Sociais da Casa Civil da Presidência da República).

Começo por lhe colocar uma questão de natureza generalista: que apreciação faz do desempenho do sistema educativo português?

Ao fazermos uma análise global e diacrónica da evolução do sistema educativo português, não podemos deixar de manifestar algum optimismo por aquilo que, apesar de tudo, foi alcançado num período de três décadas. É bom não esquecer qual foi o ponto de partida após várias décadas de ditadura. A escola portuguesa foi capaz de vencer limitações antigas e, em determinados domínios, chegar a resultados francamente positivos, como a taxa de frequência do ensino superior, que hoje não se situa muito longe dos índices europeus.
Neste capítulo, não se pode deixar de questionar a incapacidade do sistema económico em absorver o conjunto dos licenciados saídos do sistema, problema que, na minha opinião, finge-se não existir. Mas ele começa a colocar problemas sérios, porque estamos a falar já de largas dezenas de milhar de jovens licenciados que não têm emprego ou que apenas conseguem colocação em trabalhos onde se exige aptidões inferiores às suas qualificações escolares.

Mas é perceptível um sentimento de insatisfação com o sistema educativo português. A que se deve, na sua opinião?

Esquece-se desde logo que não se pode exigir ao sistema educativo níveis de qualidade que muitos outros domínios da sociedade portuguesa não alcançaram. Considero até ? e esta é a minha tese ? que algumas das limitações que ainda subsistem no sistema educativo decorrem mais das debilidades e dificuldades da sociedade portuguesa em geral do que propriamente da incapacidade do sistema e dos seus principais actores, os professores, que não são, ao contrário do que se afirma, o elo mais frágil do sistema educativo.
Não se pode esquecer que hoje em dia, numa sala de aula concreta, seja na periferia de Lisboa, seja no centro do Porto ou em algumas regiões do interior, se encontram crianças e jovens provenientes de origens sociais onde o capital e investimento cultural das famílias é muito baixo, e onde, em muitos casos, a escola é socialmente desvalorizada.

Não será estranho que após mais de trinta anos de esforços a procurar ganhar a batalha da educação e da qualificação esse sentimento de desvalorização da escola permaneça?

Não podemos esquecer que há um mau ponto de partida. Há três décadas tínhamos um índice muito elevado de analfabetismo, sobretudo de iliteracia. E na geração dos pais dos jovens que hoje frequentam hoje o sistema educativo, sensivelmente entre os quarenta e os cinquenta anos, subsiste uma elevada percentagem com níveis de instrução inferiores à actual escolaridade básica obrigatória.

Esse sentimento de insatisfação parece perpassar igualmente pelos jovens. Qual é a percepção que eles têm hoje da escola?

Considero precisamente que muitos dos jovens de hoje herdaram uma certa imagem de desvalorização da escola que é dominante nas suas famílias. No extremo oposto, há um conjunto de jovens oriundos de famílias privilegiadas, sobretudo em termos de capital económico e cultural, que, por terem uma relação mais próxima com o mundo da informação e com as indústrias culturais, têm uma relação desencantada, para não dizer irónica, com o trabalho de ensino aprendizagem que se pratica na escola e na sala de aula. Esta questão passará também em grande medida, claro, pela crescente perda de estatuto social dos professores.

Publicou recentemente um artigo no jornal Público onde principiava a sua argumentação fazendo referência a uma afirmação do filósofo José Gil: "porquê tanto ódio, tanto desprezo, tanto ressentimento contra a figura do professor?". Por que razão é o professor apresentado hoje como bode expiatório pelas debilidades da educação portuguesa?

Na prática escolar quotidiana é o professor quem continua a estar numa posição charneira, no sentido em que é ele que se encarrega de gerir em tempo real ? e esta dimensão do tempo real é muito importante ? uma série de problemas que se condensam na sala de aula.
Problemas que têm raízes muito diversas, nomeadamente a grande heterogeneidade de origens sociais dos alunos ? onde há os que estão muito longe de dominar os instrumentos necessários para entrar em sintonia com aquilo que é dito na sala de aula, e os outros que, pelo contrário, têm por vezes uma aquisição por excesso de instrumentos que lhes dão a ilusão de poderem dispensar a figura do professor para aprenderem e progredirem.
O contacto com as novas formas da cultura massificada e do acesso fácil à informação cria igualmente uma ilusão de dejá vu, fazendo com que para alguns a aula constitua uma maçada e conduza a uma certa incompreensão relativamente ao esforço do professor no sentido de procurar sintonia com eles e com os outros, tarefa que hoje exigiria metodologias muito diversificadas. Ora, esse desencontro é permanente.

Mas porquê a cristalização desse ressentimento nos professores, e nos sindicatos, como refere no seu artigo?

Penso que será o resultado da incapacidade, não sei se intencional, de procurar entender as origens dos problemas. E quando não se quer, ou não se pode, ir ao fundo dos problemas tenta-se encontrar um bode expiatório. E dado que o sistema educativo continua a girar em torno da sala de aula ? que considero ser uma forte limitação do actual sistema educativo ? e do professor enquanto dinamizador do processo no seu interior, é a este que é assacada a incapacidade para gerir melhor o conjunto de problemas que tem pela frente. Um erro crasso, na minha opinião.

Institucionalizar o trabalho em rede

Que razões o levam a considerar a sala de aula como uma limitação do sistema educativo?

Porque a sala de aula, até pela sua configuração física, é um espaço que está em dessincronia com as actuais dinâmicas culturais. Para poder funcionar precisa de encontrar do lado dos receptores da mensagem disposições incorporadas que levem a uma aceitação tácita, no momento em que o professor fala, daquilo que ele está a dizer.
Acontece que, por variadas razões, face às quais o professor não tem qualquer tipo de responsabilidade, essa possibilidade de estabelecer uma "transacção fácil", digamos assim, ao nível comunicacional é hoje muito reduzida. Daí o tempo médio muito elevado que cada professor despende para tentar, no local, diariamente, em qualquer aula, estabelecer o tal patamar de sintonia. Que pode levar 15, 20, 25 minutos, se calhar às vezes mais?

Será a "falta de autoridade", tantas vezes referida? Os professores perderam de facto essa autoridade?

Em certo sentido, sim, na medida em que quando não estão adquiridos esses dispositivos, o significado objectivo, os alunos não conferem autoridade ao discurso que estão a receber. Poderá haver várias saídas para isso: não ouvir, não estar atento, ser um "dissidente" na sala aula. Noutros casos, evidentemente, acontece sintonia, mas há também a rejeição absoluta, até agressiva, violenta.

Mas de que forma recuperar essa autoridade? Através do autoritarismo?

Não, de maneira nenhuma. Existem muitas formas, e uma delas talvez passe pela diminuição drástica do número de alunos na sala de aula. Ou dando a aula com mais de um professor, porque não? Poder-se-á argumentar que são medidas financeiramente dispendiosas, mas se queremos, de facto, apostar seriamente na educação, apostando nela como vector estratégico para o país sair da situação difícil em que se encontra, então é preciso investir.

Que outras medidas poderão contribuir para esse objectivo?

O apoio psicológico, por exemplo, que actualmente é uma medida pontual, mas que deve assumir-se como permanente e fazer parte do quotidiano das escolas, ao qual o professor deverá recorrer para melhor poder lidar com alguns problemas com que sistematicamente se confronta na sala de aula.
A generalização de práticas de apoio ao professor por parte de outros profissionais, como psicólogos e assistentes sociais, é uma medida indispensável. Até para não conduzir o professor para soluções que, por vezes, podem mesmo agravar os problemas. É que hoje em dia exige-se aos professores formas de intervenção junto dos alunos e das famílias para as quais eles não estão preparados. Mesmo quando essas iniciativas, como o apoio psicológico espontâneo, são bem intencionadas.
A realidade é que, actualmente, os professores estão isolados na sala de aula ? pior do que isso, isolados uns dos outros ?, as escolas estão desapoiadas, divorciadas de redes de apoio social. Que até existem. Aliás, existem hoje na sociedade portuguesa mais redes sociais de apoio aos grupos desfavorecidos do que acontecia no passado. Estas redes deveriam ser postas em articulação institucional permanente, assumindo um acompanhamento orgânico que, de algum modo, sirvam para filtrar uma grande parte dos problemas que hoje se projectam directamente na sala de aula.

A melhor forma de caminhar para uma sociedade tendencialmente igualitária passará por um sistema educativo unificado, padronizado, com currículos e percursos educativos pré-estabelecidos, como acontece actualmente, ou antes por um percurso único mas diversificado?

Eu tenho sobre essa questão uma opinião que julgo ser pouco partilhada. Penso que o sistema unificado deve prolongar-se temporalmente tanto quanto possível no percurso escolar, mas basear-se em formações de leque muito alargado. Esta foi uma limitação que, na minha perspectiva, marcou negativamente o sistema educativo português, impedindo-o, nomeadamente, de encontrar uma solução adequada para aquele que é um dos seus principais constrangimentos: o ensino técnicoprofissional. Isto porque, na minha opinião, ele se assume, no mau sentido, como um sistema demasiado licealizado, com muito pouca abertura para outras aprendizagens, essenciais para atrair alguns grupos que, por motivos de origem social e de algumas limitações culturais de base, aderem dificilmente aos saberes mais formais mas poderão mostrar abertura para uma aprendizagem de natureza mais experimental.
Com a oferta de um leque de formações alargadas mais informais, penso que seria possível garantir uma formação básica correspondente ao 9º ano bastante mais atraente, o que conferiria maior igualdade de oportunidades no momento de optar pelo prosseguimento de estudos. O que assistimos hoje é a elevados índices de insucesso escolar e de abandono precoce. Não é justa a existência de formações que dão mais facilidade a um conjunto de alunos só porque têm uma herança cultural que lhes é mais favorável.

Iludir o essencial ignorando os problemas de fundo

A escola ? cada vez mais a tempo inteiro ? parece ter-se transformado na única resposta às necessidades educativas dos jovens portugueses, com uma panóplia de formações que, de certo forma, a esvaziam da sua função primordial. Será que os agentes exteriores à escola não deveriam ter um papel mais activo na prossecução desse papel?

Sim, estou de acordo. Se a tal ligação das escolas aos sistemas de protecção social assumisse uma função institucional, integrando-se no seu quotidiano e incorporando-se nas rotinas profissionais de quem está na escola, muitos desses problemas eram resolvidos noutros âmbitos.
O sistema educativo, por exemplo, está claramente desarticulado com o sistema de saúde. E é possível, e necessário, fazer uma articulação regular e institucional entre os dois. E quem fala do sistema de saúde fala do sistema de reinserção social e de outros serviços que, no actual formato, não trazem nenhuma mais valia significativa ao quotidiano das escolas. Desta maneira, seria possível libertá-las de uma série de tarefas que ela continua a acumular como se este fosse o espaço onde se encontre solução para todos os problemas não resolvidos da sociedade portuguesa.

Numa lógica de escola concentracionária?

Sim, e é nesse sentido que algumas medidas que podemos considerar como positivas, como a implementação do estudo acompanhado ? que, aliás, era uma prática espontânea por parte de muitos professores - não possam ser concretizadas de uma forma equilibrada, porque se sobrecarrega os professores para além do razoável, impedindo-os de, por exemplo, terem tempo para uma preparação cuidada das aulas ou para a implementação de soluções imaginativas que podem fazer a diferença no confronto diário na sala de aula.
De facto, não se pode pôr os professores a trabalhar muitas horas por dia, numa lógica aparentemente punitiva, descurando a componente de auto-formação e o tempo de discussão entre pares indispensável para garantir aulas de qualidade e, sobretudo, confiança para enfrentar as exigências do seu trabalho.

Parece estar a avançar-se para uma lógica unívoca de gestão, contrariando os princípios democráticos de funcionamento das escolas conquistados ao longo das últimas três décadas. Concorda com esta ideia?

Concordo. Mesmo no seio das organizações empresariais já se vai avançando no sentido de democratizar, por assim dizer, o espaço de trabalho. De uma forma limitada, é certo, mas vai-se avançando. A literatura referente ao comportamento organizacional e à psicossociologia das organizações, aliás, refere a importância da participação, da motivação e da criação de elos entre os diferentes actores, porque só isso permite pensar a organização a prazo, investir nela e nas formações dos seus profissionais.
Por isso me intriga e preocupa que este avanço no sentido de uma maior participação dos profissionais no seu espaço de trabalho, esteja a ser posto em causa nas escolas. Não percebo em que análises sociológicas ou organizacionais se apoiam os responsáveis da educação para concluírem que acabar com o sistema de gestão democrático em vigor resolverá os problemas. Daquilo que conheço da vida das escolas e das aspirações, motivações e formas de participação dos professores não estou a ver como é que esta inflexão no sentido do reforço da autoridade do gestor não eleito democraticamente irá melhorar o funcionamento das escolas. Tudo me leva a crer que conduzirá precisamente ao contrário.
Mais uma vez parece-me que se está a querer iludir o essencial. Em vez de se atacar os problemas de fundo que se colocam à prática profissional diária dos professores, invoca-se o argumento da gestão. Tenho a sensação de que estamos perante mais um caso de reforma cujo objectivo não é ir ao fundo das questões e mudar o essencial, mas apenas mexer para disciplinar, regular.

Depois da manifestação do dia 8 de Março, e perante esta situação de ruptura entre docentes e a tutela, qual pode ser a saída para o impasse?

Francamente, a saída afigurasse-me muito difícil. Eu contacto habitualmente com muitos professores, de diversos locais, diferentes níveis de ensino e de várias idades, e assisto a uma total falta de sintonia com o Ministério da Educação, a um desencanto enorme, e mesmo uma certa rebeldia, que, se não forem ultrapassados, evidentemente não poderão conduzir a nada de bom.
Quanto à questão de como resolver este problema em concreto, há quem tenha proposto a mediação do Conselho Nacional de Educação, por exemplo. Essa proposta foi avançada recentemente pelo Daniel Sampaio, considerando que a situação chegou a um tal ponto que para repor a confiança e alguma estabilidade será necessária a intervenção de uma estrutura formal intermédia como o CNE. Mas não sei até que ponto mesmo esta solução poderá constituir uma resposta para o impasse que se vive.

Na sua opinião, o que levou a que se chegasse a este ponto?

Acho que se deveu sobretudo a uma muita errada estruturação e sequenciação das medidas de reforma educativa. Tudo tem evoluído de forma inversa àquela que deveria ter sido a solução. Considero que, antes de mais, devia-se ter avançado com medidas que levassem a uma relação de confiança entre os professores e o ministério. O que o ministério fez desde o início, porém, foi contribuir para quebrar essa relação de confiança. Porque se partiu do princípio que os únicos responsáveis pelas dificuldades do sistema educativo são os professores, apenas por serem eles os agentes mais visíveis.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 177
Ano 17, Abril 2008

Autoria:

José Madureira Pinto
Professor Catedrático do Grupo de Ciências Sociais da Faculdade de Economia da Universidade do Porto
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
José Madureira Pinto
Professor Catedrático do Grupo de Ciências Sociais da Faculdade de Economia da Universidade do Porto
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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