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Política do espectador

O novo livro de Marie José Mondzain, Homo Spectator, persegue e desenvolve uma reflexão de longo curso, apoiada em múltiplos trabalhos e publicações[1] mas com dois livros de referência, Image, Icône, Économie (Seuil, 1977) e Le Commence des Regards (Seuil, 2003). Filósofa com um conhecimento profundo de textos antigos e dos debates teológicos respeitantes à imagem através dos séculos, Marie José usa a sua erudição e a sua procura para interrogar o presente, numa visão claramente política de resistência aos dispositivos modernos de opressão ligados àquilo a que chamamos "as imagens".
Como se vê, o assunto é imenso, assim como as fontes que utiliza e as visões que nos dá, que podem baralhar o leitor. Marie José Mondzain passa da análise profunda de um sermão de S.Paulo a um comentário sobre o tratamento de cadáveres na Primeira Guerra Mundial e, numa penada, à montagem de Godard. Homo Spectator é ao mesmo tempo a continuação de trabalhos já aparecidos e um resumo de uma reflexão recente levada em várias direcções e com múltiplos interlocutores. A sua leitura exige, assim, uma rara atenção que nos obriga a deixar-nos levar num turbilhão de propostas ao mesmo tempo teóricas e poéticas, exactamente ao contrário do pensamento difundido habitualmente pelos media.
A actualidade é o assunto de Homo Spectator, mesmo que a "cena primitiva" que funda a construção do livro seja a que se passa numa gruta pré-histórica no momento em que um homem cospe pela boca uma cor sobre a sua própria mão, cujo traço desenha na parede, à distância do seu braço. Já conhecemos esta ideia dos seus antecessores Margurite Duras, Alain Resnais, Michelangelo Antonioni, Jean-Luc Godard... graças ao cinema moderno, conhecemo-la, ou melhor reconhecemo-la, como a podem reconhecer, por outras razões, os leitores de Leroi-Gourhan ou mesmo os de Bataille. Mas sem ter até ao presente disposto da formulação conceptual que permite fazer deste momento um gesto fundador do humano, na sua relação com imagens. Neste gesto, um animal bípede faz-se humano e, ao mesmo tempo, objecto da imagem e inscriptor da sua imagem num tempo que lhe sobreviverá. Isto é explicitado no capítulo inicial do livro, e só ele dar-lhe-ia toda a importância. Aquele homem é "o primeiro espectador, isto é, aquele que entra na história que ele está a inscrever, a contar, a partilhar". Ter possibilidade de inscrever, contar, partilhar: a questão de poder é a essência desta visão, formulada em termos que recusam a rotura entre fabricante e receptor de imagens, para colocar todos, aqui chamados espectadores, na totalidade do enfoque. "Ser um humano, é produzir o traço da ausência sobre a parede do mundo e constituir-se como sujeito que não se verá como um objecto entre os outros mas que, vendo o outro, dá-lhe a ver o que poderão partilhar: os signos, os traços, os gestos de chegada e de partida."
É a partir desta cena primitiva que Marie José Mondzain pode encontrar Noé nu na sua tenda, Moisés na sua montanha, Platão na sua caverna, Aristóteles no seu teatro, Paulo no seu caminho de Damasco, Simão na sua coluna, os pintores de ícones, Agostinho na sua catedral, Edison e os Lumière, os construtores de monumentos aos mortos, Chaplin e Tati, os artistas de cinema e os apresentadores de televisão. Usando múltiplos meios que se apoiam na teologia, na psicanálise e na crítica de cinema, o trabalho do livro esmiuça a multiplicidade de questões que são sempre, em última análise, questões de relações de opressão e de liberdade, tal como esta definição de espectadoras permite formular. Encontramos no fim do livro uma meditação clarificadora entre autoridade e poder, em particular no gesto criador, em que a noção de "autor" - e particularmente de autor de filme -, formulada a partir da sua etimologia comum com "autoridade", se torna especialmente fecunda.
Este percurso interroga a construção, ou a destruição, do lugar do espectador segundo inumeráveis procedimentos históricos e teóricos, dando uma particular atenção às formas e estratégias da crença, e ao uso político do medo e do prazer. A crença, o prazer, o medo: aqui apercebemo-nos das interrogações mais agudas do cinema actual, especialmente do grupo mais dinâmico do cinema americano, Shyamalan, Lynch, Van Sant, Fincher, De Palma. De uma maneira ao mesmo tempo pedagógica e militante, falando de questões colocadas pelo pensamento contemporâneo e fornecendo métodos muito concretos para a actividade crítica do presente, face ao conjunto de imagens com que somos confrontados, este livro torna-se uma leitura obrigatória para quem se interessa por estes tipo de problemas.

[1]M.J. Mondzain publicou ao mesmo tempo que Homo Spectatorum um livro de entrevistas filosóficas destinado a crianças, Qu'est que tu vois?

Paulo Teixeira de Sousa


  
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Edição:

N.º 177
Ano 17, Abril 2008

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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