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A Reforma Tecnocrática, Autocrática e Populista da Educação

No momento em que escrevo este texto são já claros os cenários que irão caracterizar as nossas escolas nos próximos tempos, provavelmente nas próximas décadas. Apesar do significativo movimento de protesto docente ocorrido nas últimas semanas e que teve, até agora, o seu ponto mais alto na manifestação de 8 de Março, movimento que, de um ponto de vista político e sociológico, pode ser considerado ímpar entre nós, estou firmemente convicto que o processo dito de reforma da educação, iniciado pelo governo de José Sócrates e aparentemente apoiado pelo PS veio para ficar, impondo-se desde já uma séria análise às consequências que irá produzir no funcionamento das escolas e na qualidade da educação.
A retórica oficial utilizada para justificar uma ofensiva sem precedentes na nossa história recente contra as escolas e, sobretudo, os professores, funda-se na necessidade abstracta (que todos parecem reconhecer) de melhorar a oferta de educação pública e, consequentemente, a melhoria das aprendizagens e das qualificações dos alunos e da população em geral. Todos sabemos que este objectivo, tomado em abstracto, reúne um elevado consenso, a começar por aqueles que optaram por dedicar as suas vidas profissionais à educação e ao ensino e que, como não podia deixar de acontecer, constituem os seus principais (e avalizados) críticos. Mas o que torna a situação gerada pela obsessão reformadora do actual governo como singular e particularmente grave é o facto de colocar os professores (tomados como uma categoria profissional homogénea e, por outro lado, na sua dimensão mais atomizada) como os primeiros e principais responsáveis pelo alegado estado a que a educação escolar terá chegado. O mesmo se poderá afirmar em relação ao processo de reforma da administração pública, em que os funcionários públicos são apresentados sistematicamente como o principal problema e nunca como parte essencial das soluções. Se inventariarmos o conjunto de medidas de política educativa tomadas desde 2005, facilmente chegamos àquela conclusão: escola a tempo inteiro, actividades de enriquecimento curricular, o fechamento de mais de um milhar de escolas, o novo ECD (documento exemplar quanto ao conjunto de medidas destinadas a diminuir os direitos profissionais recentemente adquiridos pela classe e a limitar o acesso à profissão e ao desempenho profissional) e, mais recentemente, o documento que consagra a avaliação do desempenho individual dos professores e o da gestão das escolas, para citarmos apenas os mais relevantes.
O denominador comum que preside a esta obsessão reformadora da administração é, claramente, o controlo das contas públicas, constituindo a educação, provavelmente devido a erros de avaliação política, o campo onde mais fácil seria obter efeitos imediatos. Para tal, havia que restringir drasticamente todos os direitos dos professores, aumentar o controlo sobre os processos de admissão à profissão e sobre a progressão na carreira e limitar as margens de autonomia das escolas. É neste contexto que terá de ser entendido este movimento em torno da avaliação do desempenho dos professores e de toda a administração pública. Não se trata de melhorar desempenhos individuais nem, por um estranho efeito de dominó, permitir a melhoria da educação e das aprendizagens, mas unicamente de diminuir drasticamente o peso das despesas com pessoal no Orçamento de Estado. A avaliação surge, assim, como o instrumento, por excelência, de legitimação destas políticas educativas, como outrora serviu para legitimar as diferenças de inteligência, de rendimento escolar e as desigualdades sociais. Portanto, dado que não estamos perante uma «avaliação democrática», orientada para a melhoria das pessoas (em todas as dimensões que quisermos considerar) e das organizações, mas colocados perante uma reforma de cariz tecnocrático e autocrático, onde abundam elementos de legitimação de tipo moralista, à pergunta repetidamente feita nos últimos tempos (a sindicatos e a professores) se estão a favor da avaliação, só posso responder com um claro «não». Apenas a concebo num quadro mais amplo de reforma do sistema educativo, amplamente negociado e participado por todos, quadro esse que terá de tomar como central a redefinição do papel da administração no processo de produção das políticas de educação, pois aquilo a que estamos a assistir é a um claro branqueamento do papel do Estado no «estado a que se chegou» no campo da educação.
É de um assalto à democracia - na administração, nas escolas, nas empresas e na sociedade em geral ? que estamos a falar e que se trata de denunciar e combater.

Manuel António Ferreira da Silva


  
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Edição:

N.º 177
Ano 17, Abril 2008

Autoria:

Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho
Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho

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