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O antigo mandato da escola morreu e o novo está por pensar

É nesta política de galinheiro que estamos. De galinheiro e não de aviário. As crianças e os jovens, na sua maioria, vão cada vez mais ao cercado escolar para encontrar os parceiros, deambular, cacarejar, mostrar as penas, arrastar a asa, bicando-se uma vez por outra, numa assustadora alienação.

1. As últimas semanas têm sido de grande discussão pública sobre a escola. É pena que a motivação para tantas opiniões e tomadas de posição públicas, não tenham por base os melhores motivos. Seria mais interessante que esta discussão girasse em torno do modo como poderíamos melhorar quer a educação portuguesa, quer a vida dos alunos, funcionários e professores que no dia a dia vão fazendo a escola. Mas a discussão é pelas piores razões.
É claríssimo que ninguém ficou imune ao efeito da enorme manifestação que os professores realizaram no passado dia 8 de Março. Uma tal e tão forte tomada de posição pública atemorizou muita gente e pôs os nervos em franja a muitos mais. Raramente um acontecimento público provocou a necessidade de tantos recorrerem à dissimulação, à hipocrisia, e, quase que juro, a um abundante recurso a calmantes. O poder estabelecido, no governo e na sociedade, anda nervosíssimo. O vídeo da Carolina Michaelis, e a forma obsessiva como a comunicação social abordou o assunto, são sinais deste enorme nervosismo e crispação em que a sociedade portuguesa se encontra no que toca ao campo educativo, e não só.

2. Em termos genéricos revelaram-se dois grupos que representam dois modos opostos de olhar a educação e a sociedade. Um destes grupos é formado por aqueles que para além de terem uma visão catastrofista da educação, pensam que os problemas se resolveriam, basicamente, de duas maneiras. Uma, privatizando a maior parte do sistema, mas pondo o Estado a subsidiar a classe média, através do cheque-ensino e da liberdade de escolha da escola, de modo a que esta possa pagar a propina exigida pelos privados, deixando a escola pública como residual e destinada aos pobres que, por o serem, também são tidos como malandros e incapazes. Numa palavra, tratar-se-ia de promover a diferenciação do acesso ao ensino das diferentes classes e grupos sociais. A outra maneira seria a de acentuar os aspectos securitários na escola pública - a destinada aos pobres e remediados - regressando à «disciplina» do passado, à reconstrução da pirâmide social, à hierarquização, de facto, dos direitos e funções sociais, à mão pesada de capatazes escolares, de modo a que esta gentinha menor aprenda desde cedo a obedecer sem pestanejar. "É de pequenino que se torce o pepino».

3. Um outro grupo recusa-se a reconhecer que a escola capitalista pós-25 de Abril, nunca foi democrática, mas capitalista e centralista e, como tal, mais não fez do que continuar a favorecer a exclusão social sendo, sobretudo, madrasta para os mais pobres. Não é que no interior desta escola capitalista não se tenham dado alguns passos. Nem se pode por em causa que à custa do empenho e da competência de milhares de professores, se tenha conseguido atenuar muitos dos aspectos maléficos do sistema. Mas não é realista olhar os resultados da nossa escola nos últimos anos com demasiado optimismo. Este segundo grupo tende a ver os resultados escolares com óculos graduados para o optimismo, e, porque se distancia da análise da realidade que é a escola capitalista portuguesa, não me parece que vá mais longe do que reclamar «mais meios para a educação». E, mesmo em relação a estes, raramente diz quais os que precisa e, menos ainda, sobre o modo de os aplicar e os resultados a alcançar. Em qualquer caso, nem os que anseiam pelo regresso às velhas hierarquias e repressão do passado, nem os que se satisfazem relativamente com o presente, deixam de acreditar que a solução para «os males da educação» continua a poder ser encontrada, e construída, sem derrubar o sistema que temos e sem pensar na construção de um novo paradigma educativo para o país. Este ponto, esta ilusão de que o sistema é reformável, faz com que os dois grupos, aparentemente opostos, naveguem no mesmo barco, um barco que partilham com ME.

4. Aceitemos de uma vez por todas que uma sociedade nova, pós-industrial - chamemos-lhe do conhecimento ou da comunicação - exige um novo paradigma educativo, uma nova maneira de pensar a aquisição do saber, uma nova forma de ensinar, de aprender, de formar, de educar. Numa frase: é preciso reinventar os sistemas educativos, reescrever o mandato educacional, abrindo caminho a uma nova prática profissional docente.
É para a descoberta e a construção deste novo paradigma educacional que todos, sociedade e escolas, devíamos ser chamados a pensar e a trabalhar. Reconheçamos sem rebuços: o antigo mandato atribuído pela sociedade à escola morreu. Já ninguém pede à escola que se limite a ensinar o conhecimento concebido pelo velho iluminismo. Já ninguém lhe pede que feche as portas do ensino primário a milhões de crianças deserdadas pela fortuna do nascimento. Ninguém aceita que a escola se organize para, através de exames, ir eliminando ao longo do percurso os que não se adaptam à norma única pré-estabelecida pelos poderes, formando assim, deliberadamente, para os diferentes patamares da hierarquia profissional e social. Não pedem à escola que segregue, mas que inclua.
O modelo velho, que é ainda o que temos, foi organizado e pensado para a selecção e a exclusão, para a imposição da norma única, para a conversão de todos à mesma cultura, isto é, para a partilha desigual e acrítica da cultura dominante. Ora, nas sociedades democráticas, tudo isto está, de facto, posto em causa.

5. A sociedade actual, para atingir níveis elevados de bem estar, precisa de elevar o conhecimento de todos os cidadãos. O novo mandato atribuído à escola tem como fundamento a necessidade de ensinar e educar todos tirando o máximo partido das potencialidades de aprendizagem de cada um. À escola também se lhe pede agora que, além de ensinar as ciências e as artes, promova o ensino do que genericamente poderemos chamar de educação social, ou mesmo de cultura.
O novo mandato educativo reconhece implicitamente a falência da maior parte das instituições sociais, sejam elas a família ou as igrejas. E pede à escola que substitua as organizações falidas. Pedem que a escola seja escola, família, igreja, local de diversão, de socialização, de ocupação, de armazenamento de crianças e jovens, e que eduque e ensine tudo e mais alguma coisa. O ME (sigla que cada vez mais me faz lembrar um certo rebanho) apologético, propagandeia a escola a tempo inteiro.
Mas, porque não se discute a forma como a sociedade (globalmente) deve organizar a relação entre o modo de viver e a aprendizagem, com a escola a tempo inteiro, o que verdadeiramente foi imposto não é mais do que uma política de galinheiro.
Frangos e frangas, alguns já com cristas de galo ou idade de galinha, deambulam pelo cercado. De tempos a tempos os criadores enxotam-nos para as «salas de aulas». A criação move-se sem interesse e sem protesto. Uma vez empoleirados, manifestam uma apatia e desinteresse mais condizente com o debicar do alimento imprevisto do que com qualquer organização do trabalho.

6. É nesta política de galinheiro que estamos. De galinheiro e não de aviário. As crianças e os jovens, na sua maioria, vão cada vez mais ao cercado para encontrar os parceiros, deambular, cacarejar, mostrar as penas, arrastar a asa, bicando-se uma vez por outra, numa assustadora alienação. Por isso se exige que se discutam com profundidade o velho e o novo mandatos atribuídos à escola. Se clarifique, de uma vez por todas o que a sociedade precisa e quer.
E não se esqueça que um novo sistema educativo não pode ser pensado desligado, menos ainda desarticulado, dos outros subsistemas sociais - também eles a precisarem de reconfiguração - sejam o sistema de saúde, de formação ao longo da vida, da família, das igrejas, dos partidos e movimentos sociais, do atendimento de crianças em risco e de inclusão, de integração social ou as redes de formação artística, cultural, desportiva, de ocupação formativa do tempo livre, entre outras. A sociedade portuguesa precisa de clarificar e definir o seu modelo social, do qual a educação é apenas um dos elos da rede que deve permitir uma vida social saudável.
Não nos podemos calar perante o apodrecimento da situação reinante. Não aceitamos esta escola antiquada, cada vez mais reduzida a um espaço totalitário, uma espécie de cercado, síntese do quartel (na organização), da prisão (no controlo) e do galinheiro (na aprendizagem e na vida).

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 177
Ano 17, Abril 2008

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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