Página  >  Edições  >  N.º 176  >  Memórias no entalhe: o trabalho e a voz do artista popular

Memórias no entalhe: o trabalho e a voz do artista popular

Ditinho Joana é um artista popular. Escultor, registra em troncos de madeira-de-lei as práticas, o cotidiano, a religiosidade da população do interior de São Paulo. Em um programa de tv, o morador do bairro de Quilombo, em São Bento do Sapucaí se diz muito preocupado com a memória e com as práticas do homem simples do campo e com as populações negras daquela região e por isso produz suas peças.
Diz que o homem do campo fala muito, conversa muito e atribui isso a ser a conversa uma das poucas formas de manutenção de sua memória.
Para ele, sua obra é uma forma de registrar na madeira os saberes e as práticas de seu povo. E é um pouco isso que sentimos quando vimos talhados na madeira os presépios e os santos, os meninos e as brincadeiras, os homens e o trabalho, as lavadeiras carregando as trouxas.
Para ilustrar a importância da conversa para o homem comum, Ditinho narra uma história que circulava em sua família, contada por seu avô: os escravos de uma fazenda da região tinham como função limpar o arroz que era colhido para ser consumido na fazenda. Esse processo, longo e trabalhoso, exigia que os escravos colhessem o arroz, o pilassem para soltar a casca e o peneirassem limpando esses resíduos dos grãos.
Como havia uma senhora negra, "muito boa de conversa" e com a qual os outros escravos gostavam muito de prosear enquanto limpavam o arroz, o fazendeiro se incomodou com aquilo e determinou que os escravos não usassem mais a peneira para separar a casca do arroz depois de pilá-lo. Eles tinham que limpá-lo soprando, ao longo do processo. Isso os impedia de conversar já que tinham que soprar os grãos pilados o tempo todo para separá-los da casca.
A história de Ditinho provoca-nos a pensar sobre a memória e a função da conversa na sua construção e preservação. A memória em seu caráter coletivo e histórico é inventada e re-inventada pela/na linguagem, na interação entre os sujeitos.
O caso aqui contado primeiramente ilustra a importância da circulação da palavra para a manutenção da memória, mas principalmente sinaliza o quanto a conversa é prática potencialmente transformadora e empoderadora do sujeito. Os fazendeiros sabiam disso - como o sabem todos aqueles que detém o poder (ou pensam que detém o poder) sobre o "outro" - por isso proibiram o uso da peneira, impondo o silêncio das vozes naquilo que elas têm de mais potente: é através do diálogo que se tecem memórias que se mantém os laços, se constroem os processos de identificação.
É com essas práticas e com essas memórias que temos trabalhado, assumindo como pressuposto de que memórias são fruto de interações sociais que se estabelecem no presente, embora seu objeto esteja no passado. Recordar é uma atividade social e memórias são emergências de representações, valores, crenças - e por conseguinte de subjetividades - que estão/estiveram na sociedade mesmo antes de cada um de nós existirmos nela. São processos de interação que se estabelecem historicamente, na cultura, por meio da linguagem. A memória em seu caráter coletivo e histórico é inventada e re-inventada pela linguagem e é, através dela, que esses processos de atualização identitária se realizam.
Certeau (1994) vai nos ensinar que "um dado invisível da memória, uma ação pontual da memória acarreta efeitos visíveis na ordem estabelecida." (p.160).
O sujeito se utiliza da memória não só para resgatar as experiências vividas, mas também reorganizar o espaço em que vive e o seu fazer, daí o seu potencial transformador. É do próprio Certeau (op. cit.) a análise de que um dado invisível da memória, contraposto a um estabelecimento visível de forças, age pontualmente, acarretando efeitos visíveis na ordem estabelecida. A memória se aproveita das ocasiões, produzindo um fazer tático. Agindo na esfera do tempo, interfere nos espaços e nas ações. 


Referência bibliográfica:

  • CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.

    Mailsa Carla Passos

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

Mailsa Carla Passos
Doutora em Educação pela PUC-Rio; Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Mailsa Carla Passos
Doutora em Educação pela PUC-Rio; Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo