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A cada escola o seu rosto?

Liderança e abertura à comunidade

O projecto de decreto-lei apresentado pelo XVII Governo Constitucional, com o objectivo de estabelecer um novo "Regime Jurídico de Autonomia, Administração e Gestão" das escolas públicas, encontra-se justificado, de acordo com a argumentação produzida no preâmbulo, por duas ideias centrais, consideradas prioritárias.
Em primeiro lugar, a abertura das escolas às comunidades locais, reforçando a participação das famílias e dos representantes comunitários no Conselho Geral, definido como "um órgão de direcção estratégica". Em segundo lugar, o reforço da liderança das escolas, criando condições para a emergência de "boas lideranças e lideranças fortes", ou seja, dotando cada escola de "um rosto", de "um primeiro responsável, dotado da autoridade necessária para desenvolver o projecto educativo da escola e executar localmente as medidas de política educativa". Para esse efeito impõe-se, a partir de agora, através de um processo híbrido e complexo de designação, a criação do cargo de Director: "um órgão unipessoal e não um órgão colegial".
Independentemente da concordância ou da discordância face às soluções encontradas, o mínimo que se pode afirmar é que aquelas matérias, não sendo indiferentes, são contudo insuficientes para justificar um novo diploma, tal como, de resto, se apresenta consideravelmente frágil a argumentação expendida em seu torno. Não há mesmo memória de exemplo semelhante, considerando a relevância dos motivos ou das razões apresentadas pelo decreto-lei nº 221/74, de 27 de Maio (em período revolucionário), passando pela normalização precoce tentada através do decreto-lei nº 735-A/74, de 21 de Dezembro, pelo decreto-lei nº 769-A/76, de 23 de Outubro (que iniciou a fase de institucionalização da gestão democrática das escolas em termos formais e que garantiu o retorno do poder aos serviços centrais do ministério), pelo decreto-lei nº 172/91, de 10 de Maio (em regime de experimentação), até ao decreto-lei nº 115-A/98, de 4 de Maio, que consagrou a figura dos contratos de autonomia, em duas fases.
Quanto à abertura da escola às famílias e à comunidade, sabe-se, de há muito, como é diversa a situação no país e pouco dependente, aliás, do maior ou menor número de representantes comunitários nos órgãos escolares. Em qualquer dos casos, a solução para ultrapassar aquele problema residirá numa mudança radical do sistema de fechamento da escola ao entorno comunitário: a mudança da centralização política e administrativa da educação escolar, que garante o exclusivo do governo das escolas aos serviços centrais e pericentrais (desconcentrados) do ministério, consagrando uma direcção de cada escola que, de facto, e independentemente da retórica da autonomia, se situa acima e para além de cada escola concreta. Esta direcção central, a que tenho chamado atópica, representa o principal obstáculo a uma maior participação na decisão por parte das famílias e do meio. Neste capítulo, pouco ou nada mudará, segundo o projecto de diploma. É duvidoso o objectivo de reforçar a autonomia das escolas ? incessantemente repetido por estas exactas palavras desde o programa do XI Governo Constitucional -, tanto mais quanto se insiste em mudanças morfológicas (já um clássico entre nós), como se um modelo de gestão escolar coincidisse com o respectivo decreto-lei, mantendo inalterada a orgânica do ministério, bem como um extenso corpo de legislação sobre as mais diversas áreas (currículo, avaliação, etc.). Insistir nesta lógica revela incompreensão dos problemas, desconhecimento do passado e, até, da investigação produzida. Em alternativa, pode revelar objectivos de mudança distintos daqueles que são publicamente anunciados, como o reforço do controlo central sobre as escolas e a introdução de lógicas tecnocráticas de inspiração empresarial.
A justificação apresentada para a criação da figura do Director inscreve-se exactamente no quadro de uma ideologia de feição gerencial, ficando por demonstrar por que razão uma liderança individual é superior a uma liderança colegial, desprezando a experiência e os dados da investigação. E por que razão haveria uma "liderança forte" de coincidir com uma "boa liderança", especialmente num quadro histórico-cultural profundamente marcado pela herança de um regime autoritário? Poderá, em qualquer caso, garantir-se uma "boa liderança" sobretudo por via jurídico-formal? As verdadeiras razões são conhecidas, sem eufemismos ou hesitações, pelo menos desde as políticas da "nova direita" inglesa e da emergência do movimento que, desde há duas décadas, ficou criticamente conhecido por "gerencialismo" (em poucas palavras, mais gestão para menos democracia).
Ao invés, uma escola mais autónoma exigiria a reforma do governo central e heterónomo que, quotidianamente, esmaga as escolas e os seus actores; exigiria mais democracia e participação nas decisões, de forma a garantir uma autonomia enquanto capacidade crescente e responsável de auto-governo e direcção própria. Pelo contrário, as mudanças propostas insistem em encontrar a pessoa certa para o lugar certo, em manter os verdadeiros órgãos de direcção das escolas fora destas, em associar democracia e colegialidade, mesmo quando profundamente sobredeterminadas, a gestão irracional e ineficaz. Associações realmente ideológicas, em sentido inverso às conclusões da investigação realizada em Portugal nas últimas duas décadas.
Todo um programa de despolitização da administração escolar para manter ou reforçar o domínio político do centro sobre as periferias. As "medidas de política educativa" não são, afinal, exclusivo do centro, cabendo às periferias a sua execução diligente e eficiente?
Em cada escola, o "rosto" que continuará a dominar foi encontrado há muito e não muda; não é sequer, por ironia, o rosto do ministro que está, a cada momento, o que, perversamente, não diminui a responsabilidade de cada um deles.

Licínio C. Lima


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho
Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho

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