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Separar as gemas das claras no ensino artístico em Portugal

Embora os nossos doces conventuais sejam bastante ricos em gemas, quando fazemos a separação, pretendemos também consumir, na maior parte dos bolos, as claras, bem batidas, ou, pelo menos, usá-las para engomar os alvos escapulários, como faziam as freiras.
Na Conferência Artística, na Casa da Música, em Outubro passado, pôde verificar-se que na maior parte das mesas principais esteve um grande número de coordenadores e de comentadores que pouco pareciam ter a ver com o ensino e com a arte, remetendo-se algumas das temáticas e experiências mais ricas para várias pequenas mesas redondas espalhadas pelo edifício. Esta ausência de grandes especialistas do Ensino Artístico ? que temos ? parecia anunciar que, para o Poder, basta ter um filho na escola para se ser Pedagogo ou herdar um violino de um tio-avô para se ser perito em Música, ou ter uma pistola de água para se ser Pintor.
A questão é bastante séria.

1 - É um facto aceitável a ideia da necessidade da "democratização" do ensino artístico em Portugal. Não no sentido de que a inteligência e o desenvolvimento do conhecimento artístico vão contribuir para a aprendizagem da matemática e de outras disciplinas; mas porque se engrandece a literacia emocional dos jovens, futuros cidadãos de direito e dever plenos; porque todo o desenvolvimento humano carece da contribuição da imaginação; porque o papel dos sentidos - quando ouvimos música, apreciamos um quadro ou uma cidade, avaliamos o amor de um companheiro ou de uma amiga - corresponde sempre a um contributo para um percurso de maturação. Porque somos num mesmo instante um todo e não retalhos de várias disciplinas. Há pois que proporcionar a todas as crianças, desde o jardim de Infância - ou desde o berço - até ao final da escolaridade obrigatória uma formação artística geral; e integrada efectivamente nos curricula do sistema educativo, nos quais as competências gerais explicitadas tenham correspondência real, quer nas competências transversais, quer nas específicas, o que nem sempre parece acontecer.
O ensino nas nossas escolas é bastante pobre a este nível, como sabemos. Remete-se para o extra-curricular, pressupondo não só a inoperância dos docentes titulares de turma, mas também a pouca utilidade das áreas artísticas. Um país que vive em democracia há mais de 30 anos, já teve mais que tempo de iniciar este direito de todos os jovens acederem a uma formação integral que lhes permita ter acesso a vários modos e formas de representação porque, parafraseando Godman (1978) "Há tantos mundos quantas as maneira de os descrever". 

2 - A questão do ensino especializado é outra. Naturalmente, pugna-se por que tenham acesso aos Conservatórios de Música e de Dança (e não será de pensar nas outras artes?) crianças de todos os níveis sociais; assim como se luta para que todas as famílias em Portugal possam ter um dia uma cultura que permita aos seus filhos ? desde muito novos - enveredar por essas opções permissivas do acesso ao desenvolvimento de aptidões específicas que eventualmente tenham. Isto é, repugna-se a ideia de elites. Embora, noutra linha de pensamento, pareça aceitável que um jovem engenheiro, ou trolha, possa simultaneamente ser um bom trompetista; nada impede que a arte possa ser entendida somente como uma prática.
A escola de arte é um espaço académico onde se traçam caminhos na esteira dessa mesma arte, estímulos à criação e inovação. O professor e a escola artística têm obrigatoriamente, a nível didáctico, compromissos permanentes com a arte, pois toda a escola artística simboliza uma cumplicidade entre uma política cultural e uma política educativa; todavia, as questões de autonomia e liberdade devem passar por esta harmonia.
Sendo estas escolas há tantas décadas tão maltratadas em Portugal, a vários níveis, não careciam agora de tal golpada, desajustada, economicista, ignara: o fim de pelo menos uma das modalidades de ensino.
A proposta do Ministério da Educação, ao coarctar escolhas, acaba por ser, mais uma vez, quer a entrega ao Ensino Particular dessa formação (lá vão estas escolas, às vezes semi-financiadas pelo Governo, contratar ainda mais, em acumulação, professores dos conservatórios ou, pior, outros, pouco qualificados), quer a desresponsabilização do Estado em relação à qualidade da formação artística em Portugal.
Parece mais do que lógico que se mantenham todos os regimes: articulado, supletivo, integrado e livre. E que se respeite a especificidade dos cursos de instrumento que exigem (quem não sabe?) aulas individuais.
Exigimos um Ensino Especializado Artístico. De Qualidade.
É preciso tratar das gemas, com cuidado, pois se caem nas claras, lá se vão os castelos? de sonho. E nós gostamos muito das gemas. E das claras também.
Que Abril ainda anda por aí.
Educação pela arte; educação para a arte. Há muitas discussões. Mas educação sem arte?
Será possível??!!

Rafael Tormenta


  
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Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário
Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário

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