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Da casa de bonecas à Casa Branca

O mês passado lembrei aqui a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
E, de passagem, referi que as questões de género pesaram muito nas preocupações dos que redigiram aquela declaração. Não só porque a nossa profissão tende a ser cada vez mais feminina, e desde logo nos perguntamos porque tende ela a ser feminina, mas também pelo peso que a desigualdade de género tem nas andanças do mundo, trago, este mês, algumas notas sobre o «movimento» que tem apostado na consagração da igualdade de direitos entre homens e mulheres. Quero assim lembrar, apenas lembrar, a importância que o tema tem quer na transformação das sociedades quer na alteração de muitas vidas por todo o mundo.

Uma competente e dedicada dona de casa de repente declara que já não quer ser "brinquedo dos homens" e exige que a sociedade reconheça a "individualidade" das mulheres e, por arrastamento, a sua individualidade. E, decidida e de punhos cerrados, parte em busca da liberdade. Nora, a heroína da obra dramática "Casa de Bonecas", escrita no final do século XIX pelo norueguês Henrik Ibsen, encarna a luta pelos ideais feministas. Uma luta que prossegue ainda hoje quase sempre olhada e estudada na óptica do mundo ocidental e esquecendo, demasiadas vezes, o que se passa no resto do mundo.
Quem estuda o fenómeno da desigualdade de género e o olha à escala mundial, vai-nos adiantando que, ao ritmo das mudanças actuais, teremos de esperar pelo fim do século XXI para conseguirmos uma real igualdade de género que abranja toda a humanidade. Que podemos e devemos fazer para que tais mudanças se acelerem?
Direitos das mulheres: essa noção, ainda de cunho principalmente ocidental, já estava em voga no começo do século XX, embora fosse difícil imaginar então as mudanças fundamentais que se produziriam na vida de mais de metade da humanidade nos cem anos seguintes.
Foi à custa de se integrarem na força de trabalho que as mulheres puderam, pouco a pouco, conquistar poder económico e independência. A necessidade do trabalho das mulheres foi o principal factor da sua libertação. Por isso, a nível planetário, a libertação da mulher anda a par com o desenvolvimento económico dos países.
Nas últimas décadas algumas mulheres como a israelita Golda Meir, a britânica Margaret Thatcher, a indiana Indira Gandhi, a filipina Corazón Aquino, a nicaraguense Violeta Chamorro, a chilena Michelle Bachelet, a argentina Cristina Kirchner, a paquistanesa recentemente assassinada, Benazir Butho, entre outras, atingiram lugares de elevada responsabilidade politica. Sendo ainda acontecimentos excepcionais o facto de na sua maioria serem mulheres representantes de correntes conservadoras obriga-nos a pensar.
O peso político dos Estados Unidos no mundo faz realçar a actual candidatura de Hillary Clinton à presidência dos EUA, independentemente da sua eleição ou não eleição, este facto pode reforçar o impulso que leva as mulheres, em todo o mundo, a acreditarem poder deixar a casa das bonecas para assumirem o poder na Casa Branca.
Actualmente, nos países ocidentais, já há mais mulheres que homens nas universidades. Mas, apesar deste progresso, mesmo aqui, o fosso entre os sexos continua a ser enorme. As mulheres continuam a ter menos oportunidades de atingir lugares importantes, têm uma remuneração inferior e continuam sobrecarregadas por uma dupla jornada de trabalho: a profissional e a doméstica. Como disse Gloria Stein: "Agora as mulheres fazem o mesmo que os homens, mas os homens não querem fazer o que elas fazem".
Tudo começou com a luta pelo voto. No começo do movimento feminista, as mulheres encarnavam valores até aí estranhos e eram vistas como pacifistas. Queriam o direito de voto para conseguirem que o mundo fosse mais seguro para os seus filhos", comentou um dia Berkeley Kaite, professora de estudos culturais da Universidade McGill, de Montreal (Canadá). Depois veio o controlo sobre os seus corpos. A americana Margaret Sanger, que baptizou a expressão "birth control" (controlo da natalidade), foi detida em 1916 por "perturbar a ordem pública" com a sua clínica de controlo da natalidade em Brooklyn. A britânica Marie Stopes marcou a sua época com a publicação em 1918 de "Married Love" que, para milhões de mulheres, ilustrou o conceito de gravidez planeada. A invenção da pílula anticoncepcional e a sua comercialização a partir de 1960, mudou radicalmente a vida das mulheres, desencadeando uma verdadeira revolução sexual. Ao mesmo tempo, a legalização do aborto, nalguns países, reforçou o direito ao controlo das mulheres sobre as suas vidas.
No início deste processo de libertação a ênfase foi posta no conceito de "abater as diferenças de género para ganhar a igualdade", hoje, sublinha-se a traço grosso que a "igualdade se constrói no respeito pela diferença". Esta alteração de conceitos faz toda a diferença entre o passado e o presente do movimento feminista. Em 1949, Simone de Beauvoir destacava em "O Segundo Sexo" que a libertação das mulheres só aconteceria quando elas começassem a pensar como os homens. Mais tarde, feministas como Betty Friedan e Germaine Greer desenvolveram, burilaram e questionaram os argumentos de Beauvoir. Várias gerações de feministas confrontaram-se em torno do debate sobre o modo de construir a igualdade de género.
"As mulheres queriam a igualdade", diz Kaite. "Queriam fazer parte da força de trabalho. Queriam posições de poder como os homens. Mas esbarraram constantemente, num tecto invisível, que lhes limitava a sua ascensão".
A actual geração de feministas considera parcialmente ganha a batalha pelo acesso ao ensino e ao trabalho. Quer estender estas conquistas às mulheres dos países onde persistem estas desigualdades básicas. Fazem campanhas por mudanças na estrutura da vida familiar e empresarial. Defendem o direito de combinar vida familiar e emprego. Desafiam os homens a mudar de vida e a aprenderem a viver com base na reciprocidade. Querem uma igualdade de oportunidades capaz de respeitar e valorizar as diferenças de género.
Nas sociedades de economia mais débil, a causa feminista expressa-se ainda, em grande parte, na defesa dos Direitos Humanos mais elementares. A discriminação contra as mulheres predomina em muitas regiões. São muitos os governos a manter legislação discriminatória e, muitas as sociedades, a guiarem-se por práticas ancestrais que cimentaram a subordinação e a escravidão das mulheres. Os direitos das mulheres só foram reconhecidos formalmente pela ONU em 1993. A Conferência de Mulheres das Nações Unidas de 1995 apontou a necessidade de intensificar os esforços para melhorar o estatuto económico, social e político das mulheres. Afinal, muitos dos mais sérios problemas mundiais, têm raízes no tratamento desigual dado às mulheres. E, por isso, milhões de Noras continuam prisioneiras nas suas casas de bonecas. Sem direito a concorrer à Casa Branca.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 175
Ano 17, Fevereiro 2008

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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