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Educação e política: carta sul-americana

Já foi dito que a América Latina não tem identidade porque tem todas. Na busca de auto-afirmação cultural, os seus povos começam por negar o que são e a imitar o que não são. Assim são os latino-americanos. Embora elementos das civilizações asteca, maia e inca estejam nas raízes da região, raramente eles são referidos como integrando o seu background identitário. Sem dúvida, o foco numa culturalidade exclusivamente exógena anula o que a América Latina é em si: Ameríndia.
Seja como for, a história tornou a região mestiça, e é nesta condição que as acções que nela têm lugar aparecem um tanto "fora da ordem" a olhos estrangeiros. Talvez este aspecto torne-se mais acentuado ainda ao sul, principalmente quando se tem em conta a singularidade que marca a formação social brasileira. Mas, nos últimos tempos, é, por certo, o conjunto de factos envolvendo países como a Bolívia e a Venezuela que tem pautado, no estrangeiro, a "atipicidade" sul-americana.
Um Presidente-índio na Bolívia e um chefe de Estado na Venezuela que proclama em alto e bom som que o seu projecto é socialista, denominando-o de socialismo do século XXI. De resto, Hugo Chávez põe de parte as falinhas mansas e chama os bois pelos nomes, enfrentando Washington e apontando, digamos assim, o papel pouco democrático desempenhando pelos Estados Unidos na região, como o patrocínio de golpes de Estado (aliás, a última tentativa neste sentido, diga-se de passagem, foi levada a efeito contra o próprio Chávez). Evo Morales, por sua vez, não hesitou em nacionalizar refinarias de gás que desenvolviam atividades na Bolívia com preços abaixo dos praticados no mercado internacional. De forma similar, poder-se-ia aludir ainda o caso equatoriano, onde o Presidente Rafael Correa tem recusado a ingerência de organizações internacionais, como o Banco Mundial, ao mesmo tempo que reorienta a atuação do Estado, no sentido de o tornar mais protagonista na vida econômica e social do país.
Ora, como de maneira geral, este novo quadro político sul-americano tem sido noticiado? As denominações pejorativas abundam nas páginas de jornais e em comentários na comunicação social. No mínimo, diz-se que são cenas do populismo sul-americano, numa referência ao fenômeno que, na região, teve como signatários Getúlio Vargas e Juan Domingo Perón, por exemplo. Indo-se mais além, no tocante à Venezuela, qualifica-se o seu governo como uma ditadura, mesmo o seu Presidente tendo sido democraticamente eleito e as suas acções administrativas sendo submetidas à consulta popular  no que, registe-se, sempre tem saído vitorioso das urnas (aliás, a rigor, o recente malogro no referendo sobre a constituição não pode ser considerado uma derrota, já que a oposição não aumentou a sua quantidade de votos, mas sim o que se registou foi a abstenção dos chavistas).
Por vezes, o modo como o quadro político sul-americano é concebido chega às raias do cômico, se não fosse trágico. A este respeito, é paradigmático o "¿Por qué no te callas?", do rei de Espanha dirigido a Chávez na última cimeira iberoamericana, quando este reclamava do envolvimento de Aznar (um acontecimnto documentado) na tentativa de golpe para o depor ? com o agravante que na altura a Espanha detinha a Presidência da União Europeia. É um comportamento tal qual como se a Venezuela continuasse a ser colônia da coroa espanhola. Mas o caso parece ser outro: os países latino-americanos são vistos como Estados de segunda categoria (ou alguém consegue imaginar, numa cimeira de chefes de Estado europeus, um mandar outro se calar?).
Os factos ocorridos na Venezuela até o presente não oferecem base empírica para se afirmar que o país vive sob uma ditadura (mesmo que se tenha reparos a fazer a determinadas posturas de Chávez). E atenção: para os que, no intuito de demonstrar o inverso, lançam mão do argumento da não-renovação da concessão da RCTV (ou encerramento, se quiserem), nunca é demais lembrar que o ato teve amparo constitucional, por o canal, em associação com a CIA, ter perfilado na dianteira na tentativa de golpe de 2002.
Na verdade, o que está em curso actualmente na América do Sul hoje é outra coisa. Trata-se de um processo que vem já de há algum tempo, onde a educação está no centro. A diversidade de movimentos sociais desenvolvendo acções político-educativas, cujo ponto de culminância, penso, foi consubstanciada pelo Fórum Social Mundial tem sido responsável pela instauração de uma nova hegemonia política na região.
Em recente estadia académica na Argentina, ouvi das Madres de la Plaza de Mayo uma declaração que bem sintetiza o atual momento político sul-americano: "nosotros queremos hacer nuestra historia".

Ivonaldo Neres Leite


  
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Edição:

N.º 175
Ano 17, Fevereiro 2008

Autoria:

Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil
Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil

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