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Contra a educação totalitária

Lendo, ouvindo e vendo o que faz mover o nosso mundo, somos levados a pensar que continuamos imersos num tempo (Santo Agostinho dizia que o tempo é o espaço onde decorrem as coisas) em que, como já dizia Salomão (pela voz do Eclesiastes), "não há nada de novo debaixo do sol; vi tudo o que se passa debaixo do sol e achei que tudo é vaidade e vento que passa." Ou, parafraseando o "nosso" Agostinho da Silva, mais de dois mil anos depois do sapientíssimo rei de Israel, - que terá pronunciado três mil sentenças e composto mil e cinco poemas - o que se verifica à nossa volta é cada vez mais do mesmo...
Às reflexões daqueles educadores se poderiam juntar muitas outras, produzidas ao longo dos séculos com a mesma intenção de ensinar os homens a "viver bem". Por exemplo, as que Bertrand Russell, Prémio Nobel da Literatura, reuniu num livro publicado, em Portugal, há cerca de cinquenta anos ("A Conquista da Felicidade" - Guimarães Editores, Lisboa), escrito, declaradamente sem preocupações de erudição, "na convicção de que muitas pessoas que são infelizes poderiam tornar-se felizes graças a um esforço bem dirigido", não sendo suficiente, como sucede com os outros animais, "ter boa saúde e bastante comida" e deixar correr a vida, "à maneira das bolas de bilhar, que não têm qualquer relação umas com as outras a não ser quando se chocam".
Recorde-se que o Eclesiastes já predicava que "não há nada melhor para o homem que comer, beber e gozar o bem-estar, fruto do seu trabalho." Mas distinguia a conquista do bem-estar alcançado através de uma conduta virtuosa de "sabedoria, ciência e alegria", que agradava a Deus, dos "cuidados do pecador em recolher e acumular bens que eram vaidade e vento que passa", que agradava ao Ego.
Russel, filósofo e matemático, sendo professor, não separava a prédica da filosofia, postulando que a conquista do bem-estar e da paz de espírito deveria ser dirigida no sentido de vencer a "antítese entre o próprio Eu e o resto do mundo". Hoje, ele não hesitaria em corroborar a afirmação de um escritor "pós-moderno", Matthieu Baumier ("A Democracia Totalitária" - Publicações Europa-América, 2007), segundo o qual, "o individualismo hedonista tornou-se legítimo e já não encontra oposição." E citando Mounier, - "Chamemos regime totalitário a todo o regime no qual uma aristocracia de dinheiro, de classe ou de partido assume, impondo a sua vontade, os destinos de uma massa amorfa" considerava, que para sermos o menos infelizes possível, tornámo-nos objecto de um bem-estar totalitário, perdendo a capacidade de nos exprimirmos de forma autónoma.
Para Russel, essa autonomia, que Baumier vê confrontada com um hedonismo totalitário "num mundo onde a imagem virtual do mundo substitui o mundo", adquire-se através de um exame de consciência que não exige tanto "uma filosofia profunda ou uma vasta erudição, como uma observação inspirada pelo bom-senso."
Conhecendo bem o mundo dos humanos e observando como a competição, não obstante as variáveis ditadas pelas diferenças do tempo e do espaço em que ela ocorre, Russel distinguia as "filosofias de vida" adoptadas, por exemplo, nos Estados Unidos e na Europa, há cinquenta anos, cujas balizas eram, nos primeiros, o negócio, e na segunda, o prestígio. E ponderava:
"A raiz do mal reside no facto de se insistir demasiadamente que no êxito da competição está a principal fonte da felicidade. Não nego que o sentimento do triunfo torna a vida mais agradável. Não nego também que o dinheiro, até um certo limite, é capaz de aumentar a felicidade; para lá desse limite, não. O que afirmo é que o êxito só pode ser um dos vários elementos da felicidade e que é demasiado o preço pelo qual se obtém se a ele se sacrificam todos os outros."
E verificando que "em todas as classes abastadas nada há que atenue o carácter rude da luta pelo êxito financeiro", de que não escapavam os professores "assalariados ao serviço dos homens de negócios" (recorde-se a predominância da escola privada sobre a pública nos Estados Unidos), Russel exemplifica, certamente a pensar a escola como a última fronteira das Humanidades e a "fonte boa" onde começa o "rio" da educação:
"Desde muito cedo as crianças americanas sentem que essa luta é a única coisa que importa e não querem incomodar-se com uma educação isenta de valor material. Antigamente a educação era principalmente concebida como uma aprendizagem dos prazeres e quando digo prazeres refiro-me aos de natureza delicada, aos que não são acessíveis aos espíritos inteiramente incultos."
Semelhante concepção da educação tinha Sócrates, dois milénios antes, a avaliar pelo conselho que deu ao seu amigo Críton, confuso perante as diversas práticas dos educadores quando sujeitos às pressões da sociedade: "Sê ponderado e não te preocupes com que sejam bons ou maus os mestres de filosofia, e sim, pensa unicamente na própria filosofia. Esforça-te por examiná-la bem e sinceramente; se for má, procura arredar dela todos os homens, mas se for o que acredito que ela é, segue-a, então, e serve-a, e regozija-te."
Esta resposta serviria, hoje, para responder ao questionamento que faz outro professor, Eugénio Lisboa, num artigo publicado no Jornal de Letras, em Dezembro passado, sobre a cada vez maior ausência das Humanidades na escola: "Para quê a História, a Arte, a Filosofia? Como verme daninho, o utilitarismo estreito e o economicismo, a propósito e a despropósito, infiltram-se insidiosamente no espírito dos burocratas da Educação e dos empresários da investigação e tudo corroem, como cancro incontrolável e sinistro."
Enfim, nada de novo debaixo do sol, pois, como diria também Baumier, "a questão fundamental é a da tomada de consciência". O que implica, contudo, um desafio e um risco: o desafio é a reflexão sobre as fronteiras do dever burocrático de profissionais da escola "formal", em nome do Êxito (sempre) a prazo e a responsabilidade dialéctica de agentes autónomos da escola "inteira", em nome do Homem (sempre) intemporal; o risco é o de, tomados por subvertores do sistema totalitário vigente, serem condenados a beber cicuta, como sucedeu a Sócrates.

Leonel Cosme


  
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Edição:

N.º 175
Ano 17, Fevereiro 2008

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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