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A Cimeira das múltiplas expectativas

Quem fizer um balanço realista do que foi a Cimeira Europa-África só por uma visão paroquial, ignorância ou alheamento do contexto sociopolítico em que ela se realizava deixará de reconhecer duas evidências: o êxito inegável do desempenho organizativo da presidência portuguesa e o resultado possível (não sendo o desejável igual para as partes envolvidas) no confronto dos interesses diferenciados das 27 representações da Europa e 53 da África.
Pela conduta da sua representação, Portugal afirmou-se como um país hoje liberto de pendências coloniais, sem assomos paternalistas nem complexos de superioridade. Mostrou ter aprendido o suficiente da filosofia africana, segundo a qual, como já foi defendido por "sages" europeus como John Locke e David Hume, é dos acontecimentos e da sucessão deles que se deve inferir a causalidade e a necessidade. Olhando em derredor, os velhos "filósofos" angolanos ? que um europeu consideraria laxistas? inscreveram no seu adagiário: "Quem quiser apanhar bagre não remexe a lama." ? "Cada governador com o seu administrar, cada chuvada com os seus lamaçais."- "Não castigues o teu cão pelos defeitos próprios dos cães."- "Tem que morrer o defeituoso para que o defeito acabe."
Tendo assistido à IX Cimeira da União Africana, realizada no passado mês de Julho na capital do Gana, José Sócrates intuiu certamente das intervenções dos 54 países africanos ali presentes que Portugal deveria gerir a diversidade de ideias e de interesses em confronto por forma a que, no final do conclave de Lisboa, nenhum participante africano desse por inútil os dois dias ali consumidos e não regressasse a casa pensando, em definitivo, como diz outro provérbio angolano antigo, que "açúcar mexido por muitos doceiros não pega o ponto".
É que, pelo menos, o "ponto" pegou numa declaração colectiva de compromisso sobre princípios que, sendo marcos civilizacionais, "sujeitam" igualmente europeus e africanos a uma ética universal fora da qual nenhum país "civilizado" deseja estar excluído. Isso foi atingido graças a um clima propiciado pelo país organizador ? diga-se que com o contributo do presidente da União Africana, John Kufuor, e do presidente da respectiva Comissão, Alpha Konaré.
Positivo, ainda, foi que o clima conseguido, que não coibiu a chanceler alemã, Angela Merkel, de criticar acerba e certeiramente a governação do presidente do Zimbabué (secundada por Javier Solana, que declarou exprimir o sentimento de todos os membros da UE), não induziu ninguém a mandar calar o interlocutor nem a pôr o adversário de joelhos. A resposta evasiva de Mugabe, de que os europeus não compreendem a África, não teve eco mesmo junto daqueles que, por solidariedade ideopolítica, nomeadamente a África do Sul, lhe estão mais próximos.
Muitas e várias são as Áfricas, como o demonstra a recusa (repetida na sua anterior Cimeira de Acra) da ideia, defendida pelo presidente da Líbia, Muammar Kadhafi, mas não só, de, indo mais longe do que a União Europeia, criar os Estados Unidos de África. E nenhuma ousou defender, de viva voz, as práticas monstruosas que, na Rodésia, no Sudão e noutros países em convulsão, negam os mais elementares direitos humanos. Não será por "compreensão" que muitos países africanos se omitem ou silenciam perante o exercício de um poder ensandecido por se ter feito prisioneiro de si próprio. Talvez só o façam para se defenderem de pecados parecidos que já cometeram ou possam vir a ter "necessidade" de cometer. Ou por acreditarem, como reza o referido adagiário, que o defeito acabará enfim com a morte do defeituoso, afundado no seu lamaçal...
Mas não nos deixemos enganar acerca dos verdadeiros objectivos que mobilizaram europeus e africanos para um encontro que não era um conclave ecuménico, em que qualquer profissão de fé, se fosse além do circunstancial, poderia abrir os armários dos esqueletos (coloniais e pós-coloniais) e subverter e invalidar o objectivo principal, aliás declarado por José Sócrates em Acra: alcançar "uma nova parceria estratégica" entre a Europa e a África. Obviamente, para contrabalançar as novas parcerias que ameaçam a hegemonia histórica europeia: China, Índia, Rússia e Brasil. De concreto, para África, ela consistiria liminarmente na manutenção e incremento das ajudas aos países mais pobres e desprovidos de meios de desenvolvimento em prazo útil, e para todos, no estabelecimento de relações comerciais justas, começando pelo levantamento das barreiras de quotas e tarifas aos produtos africanos.
Não declarável, para a Europa, lembrar o capital histórico-cultural (implicitamente técnico e científico) que sobreviverá a todos os convénios económico-financeiros já realizados e a realizar com os novos "parceiros" emergentes, nomeadamente a China, que, já com significativa incidência nas ex-colónias portuguesas e sendo o terceiro parceiro comercial de África (a seguir aos Estados Unidos e França), na Cimeira realizada em Pequim reuniu 41 líderes africanos, aos quais prometeu que "jamais teria qualquer atitude neocolonial ou imporia práticas iníquas". Há alguns anos, um líder chinês dizia, falando da nova estratégia negocial, que não importava a cor do gato, desde que caçasse ratos...
Provavelmente, sem ter em conta a diversidade dos "doceiros", houve quem esperasse da Cimeira de Lisboa resultados mais "palpáveis" do que a assunção de posições que deverão ser avaliadas na próxima edição, marcada para daqui a três anos. Só então cada participante mostrará quanto, individualmente ou em parceria, fez para honrar o compromisso "moral" formulado na Declaração final, em que foi unanimemente reconhecido que sem respeito pelos direitos humanos e preservação da natureza que ainda resta nenhum país sobreviverá à previsível globalização da catástrofe planetária em condições de cantar vitória.

Leonel Cosme


  
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Edição:

N.º 174
Ano 17, Janeiro 2008

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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