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"Visitar o lagar do avô da Rute1 para conhecer o Pisco"

As mudanças operadas nos espaços rurais nas últimas décadas traduzem-se, na actualidade, e em circunstâncias variadas, em comportamentos dos seus habitantes que, enquanto mostra da vivência de novas ruralidades, evidenciam os resultados dos modelos dominantes de desenvolvimento que, sucessivamente, têm vindo a afastar os habitantes locais dos seus espaços. Processos contínuos de encerramento de serviços públicos, factores associados ao aumento dos níveis de escolarização e às mudanças de cariz neoliberal no mundo do trabalho podem justificar o fenómeno.
Nos adultos, tais comportamentos decorrem, em grande medida, de uma presença cada vez mais diminuta na aldeia devido à migração pendular diária, por motivos profissionais, para os centros urbanos mais ou menos próximos. Nas crianças, apesar da permanência mais ou menos assídua, o afastamento do espaço em que habitam resulta da força omnipresente da cultura urbana, dominante, que se revela tanto através do acesso quase universal às mais recentes tecnologias de informação e de comunicação, como, mais recentemente, pelo aumento do tempo de escolarização a que estão sujeitas no âmbito das políticas educativas designadas de "Escola a Tempo Inteiro", não olvidando as alterações decorrentes do reordenamento da rede escolar que tem levado ao encerramento de milhares de escolas rurais e à deslocação de alunos e professores para novos, ou velhos, centros escolares.
Deste modo, se para os adultos o afastamento dos espaços rurais tem uma correspondência semântica linear, uma vez que se configura em torno da ausência física e do contacto directo e permanente com o urbano, para as crianças aquele afastamento constrói-se, quotidianamente, pelo cada vez maior fechamento nos espaços domésticos ? a ver televisão, a jogar na consola?  e nos espaços escolares ? a acumular conhecimentos universais.
Tal fechamento parece conduzir, assim, ao desenvolvimento de uma identidade cultural das crianças assente em referências cada vez mais longínquas e, concomitantemente, à tendência para o desconhecimento sobre o que se passa ao lado nos seus espaços de origem.
Para ilustrar o que estamos a tentar dizer, podemos falar do Leonardo, um menino de 8 anos que frequenta uma escola de pequenas dimensões em meio rural que, no princípio de Outubro, ao tentar dar cumprimento à tarefa de elaborar o plano de mais um dia de trabalho, tal como havia sido combinado na véspera e respondendo ao convite do familiar de uma menina da turma ? a Rute ?, tenha posto à consideração dos colegas "Visitar o lagar do avô da Rute para conhecer o Pisco", sendo que o Pisco era o "tourinho" do Fernando, um outro menino do grupo. Ausência de parentesco entre a Rute e o Fernando à parte, logo, a impossibilidade de o Pisco viver nos terrenos do avô da Rute, o que ficou claro foi que o Leonardo não tinha a noção da função de um lagar. E tinha razão, pois nos seus curtos anos de vida na aldeia não tinha participado em nenhuma vindima ou assistido aos processos (já mecânicos) de feitura do vinho.
Esta situação comprova, tal como afirmávamos atrás, um processo de socialização das crianças que se caracteriza por um aumento do tempo de permanência na escola em desfavor da família[2] e por uma media(tiza) ção crescente e controladora da vida das crianças. Contudo, o cerne da questão não é, na nossa opinião, a maior ou menor influência das diversas instâncias socializadoras, mas o papel que as crianças desempenham em cada uma delas. De facto, o episódio que relatámos evidencia a premência de uma cidadania activa e pró-activa das crianças no espaço público local, que lhes possibilite, mais do que conhecer os lugares em que se movimentam, concorrer para a construção desses mesmos espaços reais ou simbólicos.

[1] Os nomes de crianças aqui utilizados são pseudónimos.
[2] Não obstante a investigação que realizámos recentemente demonstrar que a escola não tem a influência que seria expectável na definição, por exemplo, da profissão que as crianças de meio rural gostariam de ter (Silva, Rui Pedro (2007). Crianças de meio rural. Mãos na terra e olhos no futuro. Porto: Profedições)

Joaquim Marques
Rui Pedro Silva


  
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Edição:

N.º 174
Ano 17, Janeiro 2008

Autoria:

Joaquim Marques
ICE - Instituto das Comunidades Educativas
Rui Pedro Silva
CICS - Centro de Investigação em Ciências Sociais da Universidade do Minho
Joaquim Marques
ICE - Instituto das Comunidades Educativas
Rui Pedro Silva
CICS - Centro de Investigação em Ciências Sociais da Universidade do Minho

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