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O «curriculum mortis» e a reabilitação da autocrítica

A sociedade, modernizada, precisa de organização, e eficiência. Para obter um emprego, para conseguir uma promoção, para fazer carreira, o sujeito precisa de exibir as suas qualidades, ostentar os seus êxitos. Já existem até manuais que ensinam o cidadão a preparar o seu curriculum vitae.
A trajectória ascensional de cada um depende dessa peça de literatura, que lembra as antigas epopeias, porque nelas o protagonista "o herói" só enfrenta dificuldades para poder acumular vitórias. Os obstáculos servem apenas para realçar o seu valor. O passado é reconstituído a partir de uma óptica descaradamente "triunfalista".
É evidente que se trata de uma imagem que não corresponde à realidade. Na sua grande maioria, os seres humanos não são campeões invictos, não são heróis ou semideuses. Se nos examinarmos com suficiente rigor e bastante franqueza, não poderemos deixar de constatar que somos todos marcados por graves derrotas e amargas frustrações. Vivemos uma vida precária e finita, as nossas forças são limitadas, o medo e a insegurança convivem e nada disso aparece no curriculum vitae de cada um de nós. O curriculum vitae é a ponta do iceberg: é o elemento mais ostensivo de uma ideologia que nos envolve e nos educa nos princípios do mercado capitalista; é a expressão de uma ideologia que inculca nas nossas cabeças aquela "mentalidade de cavalo de corrida" a que se refere a escritora Doris Lessing. Não devemos confessar o elevado coeficiente de fracasso das nossas existências porque devemos ser "competitivos". Camões, o genial Camões, autor de tantos poemas líricos maravilhosos, não poderia colocar no seu curriculum vitae o verso famoso: "Errei todo o discurso dos meus anos".
A ideologia que se manifesta no curriculum vitae, afinal, aumenta as nossas tensões internas, porque nos dificulta a lucidez e a coragem de assumir o que efectivamente somos; obriga-nos a vestir o uniforme do "super-homem", a afectar superioridades artificiais. Além disso, ela incita à mentira, gera hipocrisia. Pela sua monstruosa unilateralidade, a imagem do "vitorioso", que nos obriga a exibir, empobrece o conhecimento de nós mesmos, prejudica gravemente a sinceridade da nossa auto-análise. É uma ideologia capaz de explorar tanto a burrice como a inteligência; capaz de influir tanto sobre as vaidades primitivas como sobre as culturas refinadas.
Para os intelectuais, ela reveste-se de máscara altamente sofisticada. No caso dos artistas, usa a mitologia da genialidade e induz frequentemente a pessoa a alimentar-se de ambições desmesuradas. No caso dos intelectuais, ela apoia-se, em geral, nos mecanismos selectivos da carreira universitária, aproveita as exigências da "publicidade" que se tornaram tão fortes na vida moderna e instiga uns a afirmarem-se contra os outros: diminui a simpatia espontânea pelos colegas, a disposição real para aprender com eles, e fortalece-se a desconfiança; cresce o incitamento no sentido de demonstrar a sua própria competência através da denúncia da incompetência alheia. Claro que não teria sentido imaginarmos que o quadro deveria ser idílico e sonharmos com uma situação na qual os indivíduos jamais colidissem uns com os outros. Sabemos que as contradições nunca vão ser inteiramente suprimidas, que a existência delas é uma dimensão essencial da própria realidade. Sabemos que o apreço por si mesmo é importante para todo ser humano: se não gostar de si mesma, nenhuma pessoa conseguirá gostar saudavelmente de outra; se não acreditar de facto nas suas convicções, não conseguirá transmiti-las às outras pessoas, não conseguirá intervir no mundo, para melhorá-lo. Contudo, a partir de um determinado nível, a auto-estima aumenta o narcisismo e acarreta uma atrofia conservadora da autocrítica.
Podemos, então, deixar de lado as condenações moralista inócuas ? do narcisismo. Elas são antigas e apresentam escasso interesse teórico. O problema que merece a nossa preocupação é outro: é o que se manifesta no efeito conservador da auto complacência, que coagula o movimento auto-renovador da consciência, enrijecendo-lhe o ímpeto criativo e a abertura para o novo. É provável que a estrutura da mente humana seja muito mais conservadora do que costumamos reconhecer.
Renovar-se, reformular as suas ideias, modificar os seus valores, é uma operação dolorosa e arriscada. Quem parece realizá-la com alegre desenvoltura é o espírito frívolo, superficial e sem raízes, que está sempre disposto a acolher as novidades porque na realidade não as assimila (já que não assimila profundamente coisa alguma). Quando a vida obriga o ser humano a mudar os critérios e valores a que ele já tinha se acostumado e nos quais fundara a sua segurança, é natural que se angustie. Os próprios neuróticos, embora sofram, agarram-se à neurose, porque têm medo de cair num sofrimento ainda maior. As nossas sociedades fragmentadas, divididas em grupos, em classes, em nações, em blocos de Estados tornam muitíssimo mais difícil uma tarefa que por si mesma já é extremamente espinhosa: a de conhecermos as camadas mais profundas da realidade em que vivemos, penetrando gradualmente na essência mais significativa dos fenómenos, enxergando as coisas de um ângulo verdadeiramente universal, quer dizer, comum à humanidade como um todo. A humanidade está muito dilacerada, os indivíduos não sabem como agir para se tornarem uma encarnação dela. Não sabem o que há de mais universal neles. E isso contribui para que eles desistam da universalidade e se resignem a ser facciosos, unilaterais. Sofremos todos a brutal pressão decorrente desse quadro, dessas condições. No entanto, volta e meia, no esforço para mudar o mundo, sentimos necessidade de nos unirmos a outros seres humanos em torno de princípios, que, por definição, precisam de ser universais. Como superar o estreitamento dos nossos horizontes, provocado pelo mercado hiper-competitivo, que nos coloca constantemente uns contra os outros? Os mecanismos do mercado forçam as pessoas a buscar lucros cada vez maiores, a disputar um trabalho melhor remunerado, ameaçam-nas com o desemprego e a miséria, intimidam-nas com a falência; além disso, disseminam a insegurança e produzem a cristalização não só dos interesses materiais como dos modos de sentir e pensar. Fortalece-se, nas criaturas, a exigência de forjar álibis. (...)
Forjamos para nós as imagens que nos ajudam a viver; e apegamo-nos a elas. O autoritário apresenta-se como "enérgico" e "corajoso"; o oportunista como "prudente" ou "realista"; o covarde como "sensato"; o irresponsável como "livre". Não existe nenhuma tomada de posição no plano político ou filosófico que, por si mesma, imunize a consciência contra a acção desses mecanismos. Somos todos divididos, contraditórios. Por isso mesmo, precisamos de promover discussões, de examinar e reexaminar o uso social das nossas concepções, examinar e reexaminar a função interna das nossas racionalizações. Quer dizer: precisamos de realizar, permanentemente, um vigoroso esforço crítico e auto-crítico.
A autocrítica é de uma importância decisiva. É por ela que passa o teste da superação do conservadorismo dentro de nós. Um conservador - é claro - pode fazer autocrítica; mas, se a autocrítica for feita mesmo para valer, seguramente que não estará a ser conservador no momento em que a fizer.
Desde que se consiga instalar solidamente na consciência de alguém, o conservadorismo pode admitir uma grande flexibilidade: pode suportar com tolerância liberal as opiniões divergentes, até as provocações e irreverências alheias. Mas não pode permitir o auto-questionamento radical. George Bernard Shaw, que conhecia o significado da autocrítica, disse uma vez que o erudito era um homem que se valia dos seus conhecimentos para criticar os outros, à medida que o sábio era um homem que se criticava a si mesmo. No sentido que Shaw atribuiu à palavra, Marx era um sábio, porque não se limitou a criticar os outros, mas também cultivava - e como! ? a autocrítica. Embora as suas ideias sirvam de base para as certezas de milhões de militantes que invocam o seu nome, Marx declarou à sua filha que, se tivesse de adoptar um lema, seria a frase latina que recomendava duvidar de tudo: de omnia dubitandum. (...)
A verdadeira autocrítica exige uma espécie de "complementação negativa" para o curriculum vitae: depois de apregoar os seus êxitos e os seus méritos, a pessoa enfrenta o desafio de reconhecer as suas frustrações, as suas deficiências, os seus fracassos, as suas fraquezas. Talvez possamos chamar a essa reconstituição dolorosa e necessária de curriculum mortis. Os indivíduos mais gravemente contaminados pela ideologia "triunfalista" que se manifesta no curriculum vitae, carecem de sensibilidade, de madura lucidez e de coragem intelectual para a elaboração desse curriculum mortis.
Eles agem como aquele político conservador que, numa entrevista, ao responder a uma pergunta sobre o maior erro que admitia ter cometido, explicou à estarrecida jornalista: "O meu maior erro tem sido o de dizer as coisas de todo mundo, cedo demais, quando os espíritos ainda não estão preparados para compreendê-las; isso desencadeia uma reacção muito forte contra o meu pioneirismo". Num passe de mágica, a autocrítica transforma-se em auto-elogio. Nos nossos tempos de desconfiança, esses lances de desprestígio tendem a surtir cada vez menos efeito. E, mesmo quando ainda conseguem iludir alguns incautos, trazem para os mistificadores talentosos vantagens precárias, pelas quais o mágico, afinal, acaba por pagar, humanamente, um preço mais elevado do que supõe. Querendo ou não, cada um de nós caminha, inexoravelmente, para a morte (e o prestidigitador não escapa a esse destino).
Reconhecer francamente os nossos fracassos, elaborar o nosso curriculum mortis, assumir autocriticamente os momentos "nocturnos" em que vamos morrendo aos poucos, aumentamos as nossas possibilidades de nos conhecermos e de nos aperfeiçoarmos espiritualmente; e, de certo modo, esse talvez seja o único caminho possível de preparação para o fim pessoal inevitável. Quem insiste em se iludir, na realidade, está a optar por não estar pronto para todas as dores que lhe vão desabar em cima, na hora da desilusão. (...)
A abordagem do tema morte, aqui, pode parecer surpreendente; os marxistas não costumam escrever sobre este tema (e há quem alegue, com alguma ligeireza, que a omissão se deve ao facto de se ocuparem, preferencialmente, dos problemas da vida).
Na verdade, só pode se aprofundar se nos dispusermos a reflectir também sobre a morte. E há um precedente da maior importância na reflexão dialéctica sobre a morte: ele encontra-se na Fenomenologia do Espírito, de Hegel. (...)
A conquista da razão, portanto, depende ? segundo Hegel - da capacidade que a consciência venha a adquirir de olhar a morte de frente, aproximar-se dela, permanecer junto dela, conviver com a sua presença assustadora (em vez de contorná-la e fingir que ela não existe). Só assim a consciência consegue enriquecer-se, assumindo seriamente os seus limites, incorporando - dolorosamente - a dimensão do negativo à sua compreensão do mundo e de si mesma. "O espírito" - lê-se na Fenomenologia do Espírito - "só conquista a sua verdade quando é capaz de se encontrar a si mesmo na mais absoluta dilaceração". (...) Mas a história rebelou-se contra os que proclamavam os seus direitos sobre ela. A prática desmoralizou a teoria que se considerava a sua carcereira e fugiu por todas as janelas. E o revolucionário foi obrigado a constatar, como qualquer homem comum, que a morte o está a devorar a cada momento. Volta a colocar-se, então, em nome da vida, a necessidade de incorporar o negativo à consciência. Através da autocrítica. Ou - se a expressão em latim não lhes parecer muito rebarbativa - através do curriculum mortis.

Leandro Konder


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 174
Ano 17, Janeiro 2008

Autoria:

Leandro Konder
PUC-Rio de Janeiro 1ª Publicação em: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/5Sem_10.html
Leandro Konder
PUC-Rio de Janeiro 1ª Publicação em: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/5Sem_10.html

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