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Slow atitude e capitalismo veloz: a crônica de uma aceleração anunciada

Há pouco tempo no Brasil fomos surpreendidos pelo destino do vôo JJ 3054, um airbus que decolou da cidade de Porto Alegre em direção ao aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Na aterrissagem, não desacelerou suficientemente na pista - uma das mais curtas do País -, e chocou-se com o edifício de sua própria empresa aérea.
Não houve sobreviventes. A tragédia marcou o ápice da crise aérea brasileira, revelando várias faces do problema. Não me deterei nas especulações conjunturais, mas no que este acidente tem de revelador dos dispositivos que tornam as vidas reguladas. Nesse sentido, vale lembrar o que Anthony Giddens chamou de "sistemas abstratos de confiança", constituídos por um tipo de racionalidade altamente tecnologizada, cuja promessa é alcançar o máximo de infalibilidade e eficácia. Apesar dos inegáveis avanços científicos e da eficácia real de muitas das tecnologias contemporâneas, parece difícil generalizar esta expectativa, como se a tecnologia pudesse se manter à parte das disputas econômicas e políticas. Tais sistemas abstratos de confiança se tornam cada vez menos confiáveis ao serem subsumidos pela lógica da acumulação veloz e do curto prazo (que sempre foi a regra do jogo capitalista, agora apenas intensificada). Quando isso acontece, se potencializam os riscos e a rejeição de uma atitude ecológica - assentada sobre a prudência e a consideração da incerteza. As conseqüências ficam por conta da minimização das margens de segurança das tecnologias, como observamos nos casos de liberação da produção e consumo dos alimentos transgênicos, da fragilidade das medidas diante da gravidade do aquecimento global, e também dos eventos pontuais, mas não menos eloqüentes, como o acidente do vôo JJ 3054.
O avião não pôde desacelerar. Entre os fatores que contribuíram para o acidente estão o desrespeito ao prazo limite para manutenção do sistema de freios (o que dificultou reverter a velocidade) e as más condições da pista do aeroporto. As obras de manutenção haviam sido aceleradas e a pista liberada antes da realização das ranhuras, fissuras que ajudam a drenar a água e a parar o avião na aterrissagem, especialmente em dias de chuva.
Este acidente, tal como outros "acidentes ecológicos" ? vide o derramamento de óleo do petroleiro Prestige, na Galícia - também é revelador de uma atitude antiecológica caracterizada pela imprudência e, como no caso do Prestige, poderia nos dar lições de educação ambiental. Não se trata, no caso em questão, de limpar um manancial ou salvar a vida selvagem de uma eco-região, mas de agir sobre uma racionalidade que polui nossas vidas, que intoxica nossos hábitos com pressa e ansiedade generalizadas, e se materializa no adoecimento social e individual.
Esses acidentes são sintomas de uma lógica com implicações para nossa ecologia social e mental, conceitos lançados por Felix Guattari, no livro As três ecologias, de 1986. Desse ponto de vista, aceleração e ansiedade são indicadores importantes para uma crítica do modo de vida, como tem feito o movimento slow food (www.slowfood.com). A ideologia hegemônica do capitalismo financeiro tende a tornar equivalentes rapidez e eficiência, intensificando as expectativas de ganhos instantâneos bem como a demanda por respostas rápidas, desde o simples retorno imediato dos e-mails até as tomadas de decisão em geral. Tampouco a produção intelectual está livre deste conceito de eficiência. Cada vez mais avaliada por critérios quantitativos, esta vem se tornando mais rápida, repetitiva e perdendo em relevância e profundidade.
Os educadores não têm escapado da pressão para acelerar sua produção e sua formação, moldando-se ao perfil do trabalhador flexibilizado. Do mesmo modo, espera-se que educadores formem novos sujeitos igualmente dotados dessas habilidades adaptativas, aptos para responder a uma existência on line, constituindo-se de bom grado em terminais de um fluxo de demandas alheias a seus ritmos e desejos pessoais. Para sobreviver a esta Matrix, há que ser altamente resiliente e não sucumbir às mazelas do stress, do adoecimento físico e mental, entre outras fraquezas para as quais devemos educar e ser educados a resistir e superar, em nome da saúde do capitalismo global e suas pretensões colonizadoras dos espaços da vida.
Como o avião, as pessoas não podem desacelerar, transitam em pistas inseguras, às vezes no limite de suas margens pessoais, sociais e ambientais de segurança, sob pressão de prazos curtos, espreitando com perplexidade sua própria obsolescência planejada. Assim como o vôo JJ 3054, na falta de bons mecanismos de reversão, seguimos aceleradamente adiante, afinal, São Paulo não pode parar, a aviação não pode parar, e você, pode desacelerar?

Isabel Cristina Moura Carvalho


  
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Edição:

N.º 174
Ano 17, Janeiro 2008

Autoria:

Isabel Cristina Moura Carvalho
Psicóloga, doutorada em educação Univ. Luterana do Brasil
Isabel Cristina Moura Carvalho
Psicóloga, doutorada em educação Univ. Luterana do Brasil

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