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Estatísticas, abstracções, interrogações

Já sabemos? basta consultar os dados estatísticos quer o ministério divulga? que o insucesso escolar é absurdamente elevado. Já sabemos que, em cada ano lectivo, centenas de milhares de alunos não conseguem transitar de ano. Já sabemos que o secundário chumba um terço dos seus alunos e que, no final do décimo segundo, cerca de metade fica à porta da universidade. Sabemos que a reprovação atinge quase um quarto dos alunos do sétimo ano e quase metade do décimo ano. Já sabemos que, no segundo ano, acontece uma primeira degola dos inocentes.
E que a taxa de retenção e desistência passa de 7,8 por cento no quarto ano de escolaridade para 14 por cento no quinto. Já sabemos que pouco ou nada melhorou, desde meados da década de 90. Já sabemos isso tudo. E depois?...
Prevejo que, em breve, as estatísticas apresentem evolução positiva. Os alunos dos cursos tecnológicos e artísticos, à semelhança do que acontece com os dos profissionais, apenas terão de fazer exames nacionais, se quiserem ir para a universidade. E também porque sucederá uma natural inflação nas notas, acaso o ministério insista no disparate de os pais virem a participar na avaliação dos professores...
O ministério aprovou mais algumas regras de avaliação. Entre as inúteis medidas ministeriais, prevê-se a obrigatoriedade de as escolas realizarem planos de recuperação dos alunos que terminaram o primeiro período lectivo com três ou mais negativas. E o acompanhamento dos alunos que, mesmo assim, vierem a chumbar. Mais do mesmo?
Os governos sucedem-se. Só o insucesso e as medidas avulsas não variam. As propostas são sempre remediativas, não logram atingir o âmago do problema.
Há mais de trinta anos, venho escutando as ladainhas dos ministérios e das corporações. Ao longo de dezenas de anos, conheci professores que acreditaram nas boas intenções dos poderes e na solidariedade dos pares. Vi esses professores fazerem maravilhas com os seus alunos, acreditando ser possível melhorar a escola. Assisti às suas tentativas de sensibilização de outros professores das suas escolas. Vi os seus projectos serem destruídos. Vi como os professores crentes eram destruídos por professores cínicos.
Cansei-me de ver a comunicação social dar guarida a espertalhões que atingem o topo de venda de livros, criticando o "eduquês". Eu também o critico, porque muita da literatura das ditas ciências de educação não passa de literatura de cordel. E é tal a distância entre os devaneios teóricos e a realidade das práticas, que certas teses não passam de ficção científica. Porém, aqueles que erigem as "novas pedagogias" em bode expiatório de todas as culpas do sistema, desviam a discussão do essencial. Apenas contribuem para a desorientação geral. E os críticos das "novas pedagogias" nem sequer conseguem apontar o nome de uma só escola que desastrosamente pratique as "novas pedagogias", que prodigamente glosam nos seus best sellers.
Cansei-me dos discursos desculpabilizadores dos que recusam reflectir as suas práticas, dos que recusam melhorá-las (melhorando a aprendizagem dos alunos) e que se julgam no direito de "não querer". Cansei-me de ver que os professores não conseguem recuperar a sua auto-estima e reivindicar o reconhecimento social que lhes é devido, porque o corporativismo os adormece com anestésicos discursos. Quando verão os professores que o seu estatuto social somente se elevará afirmando a possibilidade da mudança e não rejeitando responsabilidades. A "resistência à mudança" é um conceito polissémico. Talvez alguém o tivesse inventado para dar razão a quem recusa mudar...
Velha e quase inútil, a Escola agoniza. Os sucessivos ministérios vão-lhe aplicando pensos rápidos. Os corporativismos vão-lhe injectando morfina. Talvez porque a eutanásia seja proibida, ninguém ponha cobro ao sofrimento. A quem convém que a escola se mantenha em vida vegetativa? Em educação, não existe neutralidade. Se aqueles que reproduzem práticas bolorentas se interrogassem e procurassem saber a que senhor estão servindo, talvez chegassem à compreensão das perversões a que as suas práticas conduzem. Talvez viessem a compreender, por exemplo, que o tipo de gestão do tempo, que a sua escola adopta (idêntico ao de milhares de outras escolas) restringe o desenvolvimento de relacionamentos sociais e intelectuais saudáveis. Talvez viessem a compreender o que Henry Giroux, há muito escreveu: "com os seus cronogramas e relacionamentos hierárquicos, a rotina da maior parte das salas de aula actua como um freio à participação e aos processos democráticos".
A abstracção "turma", encarada como um todo homogéneo, ostraciza a evidência da especificidade de cada aluno. Na maioria das vezes, o aluno limita-se à recepção de conceitos a que pouco ou nenhum significado atribui. A abstracção "aula" (ritual que parte do errado pressuposto de ser possível ensinar a todos como se fosse um só) suscita desinteresse e desmotivação.
Quem se interroga? Quem interroga práticas obsoletas? Quem se interroga sobre as razões profundas do insucesso?
Os educadores deveriam adoptar a postura crítica que levou alguém a perguntar: por que razão os anjinhos papudos da talha barroca só têm cabeça e asas?

José Pacheco


  
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Edição:

N.º 174
Ano 17, Janeiro 2008

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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