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O corpo discente

A sala de aula não é um microcosmos da sociedade global, apesar de nela se expressarem algumas das suas tendências e configurações mais pesadas. Desde logo, porque há tempos, ritmos e rituais que só o cenário de interacção que é a sala de aula pode suscitar. A comunicação em sala de aula possui, pois, uma autonomia relativa, que a dissocia de outros quadros. Daí, a forteriori, a necessidade do sociólogo-docente se familiarizar com essas regras e convenções, mesmo se ? e principalmente ? as quiser transcender na exacta medida da possibilidade de dilatação do campo de possíveis. A linguagem, antes de mais, fundada em códigos elaborados (1) (por oposição aos códigos restritos do saber popular, das ruas, do vernáculo), mas também a hexis, o corpo socializado, a inscrição, tantas vezes inconsciente, de gramáticas práticas...É fundamental partir deste adquirido para também saber reconhecer nos alunos algo mais do que a mera lógica ou a ordem pura dos determinismos. Nele, corpo, perdura um trabalho autónomo de transformação, de fabricação e de invenção que faz da corporeidade agência activa da produção e reprodução do mundo ? da sua ordem e desordem; dos seus múltiplos sentidos. O corpo não é apenas veículo ou motor da «alma»: ele é fonte primeira de conhecimento. Conhece-se no corpo, pelo corpo, através do corpo. No corpo quando se incorporam disposições para a prática e para a acção que são permanente lembrança de que habitamos lugares com força socializadora; lugares que disciplinam, interditam, impõem, libertam, condicionam, orientam. É no corpo que se afirma um determinado campo de possíveis para a nossa vida ? campo que, durante uma trajectória social e biográfica, ora se dilata, ora se aperta. É ainda pelo corpo que expressamos rituais, signos, simbologias. Dessa forma interagimos e transformamo-nos em máquinas comunicantes e produtoras de significado. O corpo fala, fala sem parar, até pelo silêncio. É entre sujeitos em situação de co-presença ? isto é, entre corpos a uma distância cultural e socialmente orientada ? que se criam e recriam as condições e convenções de comunicabilidade, tornando objectivo aquilo que anteriormente era magma interior, puramente subjectivo e, por isso, socialmente inexistente. A linguagem torna acessíveis os significados íntimos da acção e permite, enfim, a sua disseminação, em determinadas condições, pelo tecido social. Finalmente, através do corpo conhecemos as estruturas da dominação e do poder, bem como as marcas físicas e simbólicas reveladoras de determinadas configurações e espaços sociais ? a história feita corpo, como Bourdieu e Foucault de forma diferencial mas lapidar relembram ? toda a história da dominação, da violência e das misérias humanas.
Ora, o corpo discente é também um corpo juvenil. Em cada aluno habita um jovem. E as práticas cada vez mais sofisticadas de alunização (2) serão sistematicamente conduzidas ao fracasso se elas forem, como são, mecanismo tecnocientífico da ideologia dominante que importa e generaliza acriticamente conceitos fetiche como os de eficácia, eficiência e produtividade. Dizer que em cada aluno habita um jovem (com a sua classe social, o seu género, a sua etnia, a sua orientação sexual, a sua mundividência) implica, pois, abrir a sala de aula àquilo que, de outra forma, regressaria pela janela quando expulso pela porta. Uma vez mais, a metáfora é a da ponte e não a da porta. Se o professor não for um mediador intercultural activo, descentrando-se, por rotina reflexiva, da sua posição habitual, para um vértice imaginário de um triângulo em que um dos outros vértices é o aluno e o terceiro vértice o do professor no seu tempo e modo tradicionais, então reinará a miopia pedagógica e não será possível estabelecer um compromisso de trabalho (3).
Não ganharia, o sociólogo-docente, em manusear, quotidianamente, um diário de campo sobre as suas práticas pedagógicas, aliando a tomada de notas estritamente pessoais (se é que tal existe...), como o deslizar por vários «estados de alma», numa mesma aula, com apontamentos de reflexão teórica e epistemológica sobre essas mesmas práticas ou, até, porque não, com o accionar de dispositivos metodológicos de observação directa, incógnita, mas estruturada, sobre qual o princípio que guia os comportamentos na sala de aula: se o princípio de corte, estudado noutros distantes contextos por Roger Bastide, em que o discente efectua uma ruptura perfeita e sem culpabilidade entre o segmento espácio-temporal vivido (ou não...) na sala de aula e outros regimes de acção, lúdicos e conviviais, ou se, pelo contrário, existe, e sob que formas, uma transição permanente entre mundos da vida, na acepção fenomenológica...O projecto discente, tanto no seu sentido estrito, escolar e vocacional, como no seu sentido amplo, antropológico, cruza-se com o modelo organizacional vigente na Universidade (onde cabem as orientações prevalecentes das práticas pedagógicas) e com a socialização por antecipação que a percepção do mercado de trabalho acciona. E aluno escreve-se, como a cultura, no plural.
Em suma, por oposição a um paradigma tecnocrata, em que o docente se assume como sujeito exterior à realidade observada ? o aluno como objecto ? e cujos resultados se medem por indicadores exclusivamente quantitativos ? os resultados escolares dos alunos ou o grau de cumprimento do programa, proponho a íntima articulação entre um paradigma pedagógico de cariz interpretativo, devedor das abordagens compreensivas e hermenêuticas, com um outro, de matriz sócio-crítica, atento à teoria crítica e aos processos dialécticos de transformação social.

1) Cf., a este respeito, Basil Bernstein,
2) Cf. Os últimos trabalhos de José Alberto Correia.
3) No sentido que Erving Goffman lhe confere ? cf. Os Momentos e os seus Homens, Lisboa, Relógio d'Água, 1999.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 173
Ano 16, Dezembro 2007

Autoria:

João Teixeira Lopes
Deputado do Bloco de Esquerda; Sociólogo. Univ. do Porto.
João Teixeira Lopes
Deputado do Bloco de Esquerda; Sociólogo. Univ. do Porto.

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