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Sociabilidade dos labirintos: educação e dependência em Patua
Diziam os antigos latinos que a História é "a mestra da via, senhora dos tempos e luz da verdade". Tal compreensão é, no mínimo, sugestiva quando consideramos, numa perspectiva sócio-económica, as discussões sobre dependência. Entendamo-nos.
Durante tempos considerada uma referencia central no seio da análise social, tanto para focar as relações entre países bem como para abordar o quadro interno de cada um deles, a chamada teoria da dependência foi, aos poucos, sendo posta de parte como dispositivo analítico, apesar das novas formulações de alguns dos seus founding fathers e continuadores. Isto não foi, contudo, algo ocasional ou, como poderia sugerir uma suposta sociologia da sociologia, decorrência de o conceito de dependência se ter esgotado por si próprio. Longe disso. Tratou-se, isto sim, de um facto político-ideológico, arquitectado através, por exemplo, da supressão das temáticas da dependência das agendas de investigação pelos chamados órgãos de desenvolvimento científico ? nacionais e internacionais (a velha questão do financiamento).
O problema, porém, é que, mesmo sendo dominante, uma ideologia não apaga, de todo, os seus elementos contrários. Como expressão da materialidade, eles dão corpo a uma realidade que nega as ideias dominantes. A propósito, ao fim da década de 1980 (período de ascensão neoliberal), ao ser indagado pelo economista Nildo Ouriques, como o próprio narra, sobre se a dependência existia, o saudoso Gunder Frank, sentado à beira da relva da Universidade Autónoma do México, foi lapidar: apontou para o verde relvado e perguntou-lhe se o mesmo existia. Ao que o interlocutor acedeu, e então a resposta foi retomada: "tal como a relva, a dependência existe; a grande questão segue sendo o que vamos fazer com ela".
Frank bem sabia do que falava. Na altura, a ideologia neoliberal era alçada à condição de pensamento único e construía um mapa discursivo onde as relações assimétricas entre países e no interior de cada um deles deixavam de ser expressas, em nome do que, nos anos 1990, denominou-se "integração da sociedade global". Mas, passados alguns anos, o que temos? Países africanos continuam a ser Estados-nada e as suas populações a viverem em condições sub-humanas; o império norte-americano a fazer ingerências nos países latino-americanos (e não só); no Médio Oriente, as potencias ocidentais plantam governos fantoches e misturam petróleo e sangue, etc. É em decorrência deste quadro que as formulações da dependência voltam a ser postas como dispositivo analítico. Não se foge à História.
Se em sua elaboração clássica, mesmo comportando versões diferentes, a teoria da dependência colocava o acento sobretudo nos processos de subordinação económica entre nações, bem como entre classes e grupos sociais, na conjuntura presente, tendo em conta a remodelação das formas de dominação, coloca-se como imprescindível considerar as dimensões educativo-culturais. Isto porquê, num contexto de globalização neoliberal, a sociabilidade que se pretende erigir tem como único referente o mercado. Esta tem sido uma tarefa na qual diversas organizações internacionais se têm empenhado com afinco, tanto produzindo documentos sobre as políticas educativas como acompanhando a sua implementação. De outra parte, a difusão de determinados padrões culturais (na perspectiva do american way of life), ao contrário do que realçam alguns multiculturalismos, inscrevem-se numa lógica sistémica que, ao fim e ao cabo, reproduzem modos de hegemonia político-económica. Sejamos claros e chamemos "os bois pelos nomes": a relação entre educação e dependência está subordinada à produção de uma sociabilidade dos labirintos, conforme os destruidores propósitos do sistema produtor de mercadorias propugnados pelo homus economics.
O risco é essa sociabilidade atrofiar a dimensão criadora da humanidade, como bem nos advertiu Celso Furtado nos seus últimos ensaios autobiográficos. Afinal, pelo que ela pressupõe, os impulsos mais fundamentais do ser humano, gerados pela necessidade de auto-idenficar-se e situar-se no universo, e que são a matriz da actividade criadora ? a reflexão filosófica, a meditação mística, a invenção artística e a pesquisa científica -, tendem a se subordinar à dinâmica da acumulação de capitais. Não buscar uma alternativa a isso, significa assentir a uma situação em que os "progressos", no fim das contas, são involuções do ponto de vista civilizatório. Ou seja, qualquer coisa similar ao cenário do "herói sem qualidades", referido por Robert Musil, configurando um quadro no qual a compreensão da nossa realidade torna-se impossível e as decisões conscientes sobre o nosso destino nos escapam.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 172
Ano 16, Novembro 2007

Autoria:

Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil
Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil

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