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Conservação da biodiversidade, a ciência e os valores
A história do conflito entre os promotores de um empreendimento imobiliário americano e os advogados da protecção de um pequeno rato saltador, referida na crónica anterior, tem o seu quê de burlesco mas constitui um paradigma das questões que hoje se levantam repetidamente em relação à conservação da biodiversidade. São assuntos que causam frequentemente discussões acesas e tomadas de posição vincadas em torno de "o que é que vale realmente a pena preservar" e "o que é importante para o bem estar e desenvolvimento humano". O papel da Ciência e dos cientistas neste contexto é também paradigmático do seu papel na sociedade em geral, sendo por isso um exemplo muito interessante de discutir. A Ciência procura obter uma descrição e explicação útil do modo de funcionamento do universo que nos rodeia. Poderá chegar à conclusão de que determinado elemento de um sistema é necessário para o seu funcionamento, ou que a sobrevivência de A depende de B. Mas não lhe compete atribuir valores, classificações de bom ou mau. E a resposta a estas perguntas é uma resposta sobre valores. A definição de valores e a tomada de decisões subsequentes tem de ser feita pela sociedade como um todo, com base no conhecimento científico que detém mas, sobretudo, nos princípios filosóficos e éticos em que se alicerça.
Afinal, por quê valorizar a biodiversidade? Em termos gerais, podem apontar-se três razões: porque podemos vir a precisar dela ? valores associados à utilidade; porque gostamos dela ? valores associados ao prazer e à estética; ou porque achamos que devemos ? valores associados à ética ou moral. A obtenção de um consenso universal torna-se, evidentemente, muito difícil. Mas numa era em que as acções humanas sobre o ambiente estão a desencadear alterações tão rápidas, esta é uma discussão essencial.
A Ciência diz que ritmo de desaparecimento de espécies vivas na actualidade é muito superior à taxa de extinções observada noutras eras. Mas isso é bom ou mau? Afinal, a extinção de espécies é um processo natural. Poder-se-á argumentar que o problema é que as extinções actuais são consequência da actividade humana e que, por isso, se trata de um processo artificial, logo, mau. Mas se considerarmos que o ser humano é parte do mundo natural, então as consequências da sua actividade também o serão. Onde reside, afinal, o problema?
Como parte do mundo natural, o ser humano também depende e beneficia dele. O desaparecimento de certas espécies ser-lhe-á, assim, prejudicial. O prejuízo pode ser imediato - temos de nos habituar a viver sem bacalhau?; ou potencial - será que aquela planta rara da amazónia contém uma nova substância terapêutica?
Por outro lado, sabemos que os seres vivos integram redes complexas de interacções e fluxo de matéria e energia, os ecossistemas. O desaparecimento de uma espécie chave pode pôr em causa o equilíbrio de toda esta estrutura, repercutindo-se também nas condições de vida da humanidade. A aplicação deste critério assume hoje um lugar importante na política de conservação. Mas como ter a certeza se uma espécie é realmente fundamental para o funcionamento do ecossistema? Não é raro sermos surpreendidos pela nossa falta de conhecimento. Quando as grandes árvores começaram a desaparecer do parque natural do Yellowstone, nos EUA (e com elas os castores, o que por sua vez provocou modificações no curso dos rios e efeitos nas condições biofísicas da região), não foi de imediato evidente que se tratava apenas de uma consequência do desaparecimento do lobo (e do resultante aumento da população de veados que destruíam as árvores jovens). Mas mesmo que se conclua que determinada espécie não "oferece" nenhum "serviço" essencial, implicará isso que não merece ser protegida?
Estes exemplos sublinham como a temática da biodiversidade proporciona uma oportunidade extraordinária de discussão actual e interdisciplinar para explorar nas escolas, pelo que vale a pena voltar a abordar.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 171
Ano 16, Outubro 2007

Autoria:

Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular
Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular

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